O Arruda Arrenegado
Reza a história que Mateus Pedro d’Arruda, o Arrenegado, terá
nascido nesta cidade de Ponta Delgada, nas últimas décadas do século dezassete,
sendo o primeiro dos “Arrenegados da Rua do Lameiro”, assim descritos nos
livros de contas do mosteiro de Santo André, a quem pagavam foro fixo anual de
480 réis por uso de vinhas e outras terras que faziam parte da doação de dito
convento e que estes trabalhavam. Estes Arrudas foram família burguesa abastada
deste burgo pontadelgadense, sendo seu neto José Joaquim d’Arruda detentor do
primeiro estabelecimento de carruagens desta cidade, sito à rua João de Deus, onde
hoje fica a rua António Joaquim Nunes da Silva, traseira ao Teatro Micaelense.
Consta que o desditoso cognome vinha de um tal António Álvarez,
avô paterno de Mateus Pedro, dito escravo branco ao serviço do licenciado
António Pereira Botelho, que por ser mouro cativo, capturado, ao que se diz, de
uma das muitas incursões que os piratas magrebinos usavam fazer às ilhas deste arquipélago
e que, por ter renegado a sua fé e se convertido, ganhou o famigerado epíteto
de “o Arrenegado”, pelo qual os seus descendentes seriam reconhecidos até bem
dentro do século passado.
Na última semana, ganhou fama o deputado Arruda, do Chega!,
que não consta seja da família, espécie de personagem picaresca de um qualquer pantera
cor de rosa dos tapetes rolantes da Groundforce, por grotesca razão do furto de
bagagem alheia na sempre entediante sala de recolha do aeroporto Humberto Delgado.
E, ato continuo, por ter sido ele mesmo arrenegado pelo seu próprio partido, numa
impressionante demonstração de mortal encarpado à retaguarda de hipocrisia
política.
Pouco mais haverá a dizer, de tal forma o absurdo do episódio
já foi escalpelizado pelos tribunais mediáticos e pelo júri das redes sociais,
sobre esta súbita notoriedade do deputado Arruda. Mas talvez seja bom refletirmos
um pouco sobre a questão da representação política e a forma desabrida como
tanto jornalistas, como comentadores e até, pasme-se, outros seus colegas deputados,
se aproveitaram das malas abafadas do deputado Arruda para afrontar a fraca
qualidade dos nossos eleitos, fazendo por passar a ideia de que se trata de
fenómeno tão recente quanto preocupante. E, ao mesmo tempo e paradoxalmente,
tentando afastar-se do deputado Arruda, ostracizando-o.
Basta regressar a Calisto Elói, austero e conservador
fidalgo transmontano, corrompido pela luxúria da capital lisboeta, figura
central do pouco celebrado e muito esquecido “A Queda de um Anjo”,
grande romance de Camilo Castelo Branco, para perceber como já nos idos de
oitocentos tanto o Parlamento, como Lisboa no seu todo, eram chão fértil para a
corrupção e a caricatura. Não que eu queira fazer do deputado Arruda um anjo,
longe disso.
O que a história ensina é que os parlamentos são espelhos
das sociedades de onde emergem e enfermam dos mesmos vícios e virtudes daqueles
que se dizem representar. E talvez seja exatamente aí, na origem e caráter dos
nossos eleitos que nos devamos concentrar. Na nossa democracia já tivemos um
pouco de tudo, desde gravadores surripiados, a autarcas condenados e reeleitos,
até primeiros-ministros indiciados. A arte do furto é uma espécie de disciplina
obrigatória do nosso curriculum parlamentar. Ao que parece, ao deputado
Arruda só lhe falhou o engenho de não se deixar apanhar na arte de larapiar. A realidade
é que entre os dramas do deputado Arruda, com a sua insana bagagem, e os
múltiplos Calistos Elóis que pululam pela política nacional, cujo talento principal
é escapulirem-se melhor aos registos videográficos da ladroagem pública, pouca
diferença haverá. E é precisamente isso que urge contrariar, essa ideia
cristalizada de que na política são todos iguais ao mais recente Arruda, o Arrenegado.
É caso para dizer, merecíamos políticos melhores, na origem, no caráter, na
postura e na linguagem e, principalmente, no tipo de bagagem que transportam
consigo. Porque, em boa verdade, a política somos todos nós…
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