quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 16

O sonho americano

Washington chamou-lhe “os emaranhamentos europeus”. Monroe, na sua famosa doutrina, aprofundou a tese da “américa para os americanos” e defendeu o distanciamento face aos permanentes conflitos entre as nações do velho continente. Mais tarde, no vórtex da Primeira Grande Guerra, Woodrow Wilson, um Democrata, cunhou a entoações de discursos radiodifundidos o slogan populista de “America First”, evitando a todo o custo a intervenção da grande potência da liberdade e da prosperidade numa Europa hostil e caótica.

A História, na verdade, ensina-nos que o sonho americano foi construído por antítese à Europa. As várias nações das Américas, sendo naturalmente os EUA o seu principal protagonista, foram construídas por homens e mulheres evadidos ao caos europeu de injustiça social, perseguição religiosa e pequenas nações permanentemente em conflito. Ao longo dos séculos, as Américas, e os Estados Unidos da América, foram o porto de abrigo de sucessivas gerações de desfavorecidos das várias nações europeias aportando ao novo continente em busca de Liberdade e Prosperidade e em fuga, muitas vezes enraivecida, ao desastre europeu.

Há uma certa húbris neste sentimento de que a América deve, por alguma razão superior, quase metafísica, acompanhar a Europa nas suas  dores e dificuldades, como se de um filho se tratasse, que deve cuidar do seu progenitor idoso nos seus anos finais de vida. Depois de ter sido salva duas vezes no século passado da autodestruição, a Europa observa em pânico o regresso dos EUA à sua verdadeira natureza de nação iminentemente isolacionista, agora na retórica alaranjadamente simplista de um  Trump messiânico e demagógico. Também nisso a História nos mostra que não há grande originalidade. Para desgosto dos muitos editorialistas e especialistas dos órgãos de comunicação social ditos mainstream, os EUA sempre foram pródigos em políticos grandiloquentes, populistas e, eminentemente, antieuropeus.

Talvez, mais importante do que censurar a narrativa trumpiana, a Europa devesse olhar para si e perceber os seus próprios falhanços e debilidades, reconstruindo-se como farol da tolerância e da igualdade. O que a tomada de posse de Trump revela é a própria incapacidade europeia de se afirmar como protagonista relevante, alicerçado na confirmação social, cultural e económica dos seus valores fundacionais. Ao revés, a Europa vê definhar as bases do Estado Social, da livre circulação e da prosperidade definida no projeto europeu, mesmo da própria paz no continente, soçobrando sob a opressão das suas próprias forças internas que, como Mark Rutte, que hoje se regozija com a perspetiva de uma Europa militarizada e “turbo-carregada” de despesas em armamento e defesa, se comprazem com a perspetiva de uma nova vertigem bélica no continente. A grande ameaça à Europa não é Trump, muito menos uma América orgulhosamente só, mas a implosão do sonho europeu de paz e desenvolvimento num continente de nações finalmente reconciliadas entre si.

Bruxelas capitulou aos pés dos mercados e da alta finança. Estrasburgo soçobrou sob o peso da sua própria burocracia e irrelevância prática. Paris e Berlim perderam-se no caleidoscópio da histeria pós-ideológica. E a velha Albion refugiou-se de novo na sua insularidade pragmática. Não admira que em Roma, Georgia Melloni reclame em excitação mussoliniana a refundação de um novo Império Romano com a cidade do rio Tibre como nova capital europeia.

Enquanto Trump se apresentava como o novo escolhido de Deus e o arauto de uma nova “era dourada”, e Biden perdoava, na vigésima quinta hora, o inefável Fauci e mais uns quantos membros da sua família, a Europa enfunava-se para mais um encontro global de interesses não escrutináveis em Davos, Portugal debatia o futuro de Vitor Bruno e o calvário portista e, nos Açores, entre sismos e depressões (meteorológicas e mentais…), Tony Carreira era apresentado como figura de proa da nova programação do Coliseu Micaelense. Cada um têm o que merece.

Sem comentários: