O sonho americano
Washington chamou-lhe “os emaranhamentos europeus”. Monroe,
na sua famosa doutrina, aprofundou a tese da “américa para os americanos” e defendeu
o distanciamento face aos permanentes conflitos entre as nações do velho continente.
Mais tarde, no vórtex da Primeira Grande Guerra, Woodrow Wilson, um Democrata,
cunhou a entoações de discursos radiodifundidos o slogan populista de “America
First”, evitando a todo o custo a intervenção da grande potência da
liberdade e da prosperidade numa Europa hostil e caótica.
A História, na verdade, ensina-nos que o sonho americano foi
construído por antítese à Europa. As várias nações das Américas, sendo
naturalmente os EUA o seu principal protagonista, foram construídas por homens
e mulheres evadidos ao caos europeu de injustiça social, perseguição religiosa
e pequenas nações permanentemente em conflito. Ao longo dos séculos, as
Américas, e os Estados Unidos da América, foram o porto de abrigo de sucessivas
gerações de desfavorecidos das várias nações europeias aportando ao novo
continente em busca de Liberdade e Prosperidade e em fuga, muitas vezes
enraivecida, ao desastre europeu.
Há uma certa húbris neste sentimento de que a América deve,
por alguma razão superior, quase metafísica, acompanhar a Europa nas suas dores e dificuldades, como se de um filho se
tratasse, que deve cuidar do seu progenitor idoso nos seus anos finais de vida.
Depois de ter sido salva duas vezes no século passado da autodestruição, a
Europa observa em pânico o regresso dos EUA à sua verdadeira natureza de nação iminentemente
isolacionista, agora na retórica alaranjadamente simplista de um Trump messiânico e demagógico. Também nisso a História
nos mostra que não há grande originalidade. Para desgosto dos muitos editorialistas
e especialistas dos órgãos de comunicação social ditos mainstream, os EUA
sempre foram pródigos em políticos grandiloquentes, populistas e, eminentemente,
antieuropeus.
Talvez, mais importante do que censurar a narrativa
trumpiana, a Europa devesse olhar para si e perceber os seus próprios falhanços
e debilidades, reconstruindo-se como farol da tolerância e da igualdade. O que
a tomada de posse de Trump revela é a própria incapacidade europeia de se afirmar
como protagonista relevante, alicerçado na confirmação social, cultural e económica
dos seus valores fundacionais. Ao revés, a Europa vê definhar as bases do
Estado Social, da livre circulação e da prosperidade definida no projeto
europeu, mesmo da própria paz no continente, soçobrando sob a opressão das suas
próprias forças internas que, como Mark Rutte, que hoje se regozija com a perspetiva
de uma Europa militarizada e “turbo-carregada” de despesas em armamento e
defesa, se comprazem com a perspetiva de uma nova vertigem bélica no continente.
A grande ameaça à Europa não é Trump, muito menos uma América orgulhosamente só,
mas a implosão do sonho europeu de paz e desenvolvimento num continente de
nações finalmente reconciliadas entre si.
Bruxelas capitulou aos pés dos mercados e da alta finança.
Estrasburgo soçobrou sob o peso da sua própria burocracia e irrelevância prática.
Paris e Berlim perderam-se no caleidoscópio da histeria pós-ideológica. E a
velha Albion refugiou-se de novo na sua insularidade pragmática. Não admira que
em Roma, Georgia Melloni reclame em excitação mussoliniana a refundação de um
novo Império Romano com a cidade do rio Tibre como nova capital europeia.
Enquanto Trump se apresentava como o novo escolhido de Deus
e o arauto de uma nova “era dourada”, e Biden perdoava, na vigésima quinta hora,
o inefável Fauci e mais uns quantos membros da sua família, a Europa enfunava-se
para mais um encontro global de interesses não escrutináveis em Davos, Portugal
debatia o futuro de Vitor Bruno e o calvário portista e, nos Açores, entre sismos
e depressões (meteorológicas e mentais…), Tony Carreira era apresentado como figura
de proa da nova programação do Coliseu Micaelense. Cada um têm o que merece.
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