O partido do povo no mundo dos ricos
Dois acontecimentos distantes e aparentemente desligados
entre si tiveram lugar no último fim de semana, um em Lisboa, outro em Veneza.
À primeira vista, nada os une, mas, olhando com atenção, talvez revelem duas
faces do mesmo dilema: a crise geral do capitalismo democrático.
Em Lisboa, o Partido Socialista ratificou, com mais de 95%
de aprovação, a sucessão da sua liderança, entronizando José Luís Carneiro como
secretário-geral. Num dos momentos mais difíceis da sua história, o homem de
Baião, que muitos veem como um líder de transição, alcança o lugar mais alto do
partido e a ambição, legítima, embora remota, de se tornar primeiro-ministro de
Portugal.
Depois de oito anos no Governo e de uma estrondosa derrota
eleitoral, o PS vê-se confrontado com uma crise quase existencial. Este momento
de inflexão em que o partido se encontra tem várias explicações, e pode ser
escalpelizado a diferentes níveis. Mas talvez a mais profunda de todas tenha a
ver com o descrédito dos cidadãos nas instituições e, bem ou mal, na
corporização do PS como símbolo dessa descrença. Ao fim de cinquenta anos de
democracia, as pessoas perderam a confiança no Estado. E o PS e o PSD, talvez
sobretudo o PS, representam, aos olhos de muitos, essa mesma desconfiança e a
sua inefável decadência.
Mas a crise das democracias é também uma crise do
capitalismo democrático, que podemos recuar até aos tempos de Tony Blair e a
chamada “terceira via”. A forma como os partidos da social-democracia, ou do
socialismo democrático, se deixaram capturar pela ditadura do capital e dos
interesses e como essa captura degenerou em fenómenos de corrupção e de delapidação
do Estado. A história dos últimos 20 anos é feita de crises sucessivas e
dramáticas que impactaram profundamente as vidas dos cidadãos e,
simultaneamente, o próprio sistema político das democracias ocidentais, reiteradamente
assoladas por casos obscenos de corrupção.
O desafio de José Luís Carneiro, e de todo o Partido
Socialista, mais do que a Habitação, a Imigração, a Economia ou o seu papel na
oposição, é reconquistar a confiança dos eleitores, afastando-se da imagem enquistada
de um partido de conluios, esquemas, compadrios e corrupção, refastelado na
manjedoura do Estado, em serviço mais de si do que dos cidadãos.
É aqui que se encontra, na minha opinião, o ponto de
contacto com esse outro evento marcante destes dias: o casamento do
multimilionário Jeff Bezos, em Veneza. O luxo faustoso e o esbanjamento
desavergonhado representam exatamente essa desconexão da realidade e o
desfasamento do mundo face às enormes desigualdades que o assolam. Não é a
riqueza em si, nem a sua ostentação obscena, que choca, não há qualquer
novidade nisso. De Nero a tocar a sua lira, a Maria Antonieta e os seus
brioches, a história está marcada pela insensibilidade dos ricos face às
desigualdades do mundo. O que verdadeiramente impressiona é a forma como a nossa
sociedade se tornou subserviente ao capital e à sua ostentação fútil.
A essência de qualquer movimento progressista está ancorada
nos valores humanistas de fraternidade, igualdade e solidariedade. O âmago do
socialismo democrático é a busca de um mundo de oportunidades iguais, não no
sentido de uma igualdade comunista, niveladora, com cidadãos separados entre a
casta dos trabalhadores e os dirigentes do politburo, mas sim de uma
solidariedade liberal que vise a criação e redistribuição de riqueza rumo a uma
vida melhor para todos.
A encruzilhada que o PS enfrenta é a de voltar a ser,
verdadeiramente, o partido dos que menos têm, em vez de parecer mais empenhado
em não incomodar os que têm tudo. Se quiser recuperar a sua alma, o partido terá
de romper com esta amarga complacência e lembrar-se de que nasceu para
transformar a realidade e não para se pôr ao serviço dos que, como Jeff Bezos,
se julgam donos dela.