quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Speakers' Corner 59

O Candidato Vieira

Nos anos 90, Lisboa fervilhava com uma pulsão indefinida feita em partes iguais de restos do pós-Estado Novo e grandes aspirações europeias, pelo meio, drogas, contracultura, angústia adolescente e uma inocente convicção de que o mundo era a nossa ostra. Antes do Lux, essa catedral do hedonismo urbano, a noite lisboeta era feita de Bananas, Alcântara Mar e do sempre ubíquo Bairro Alto, onde, entre o Estádio, o Frágil, o Mahjong e “As Primas”, numa peregrinação pagã regada a Sagres, B52’s e uma vaidade exacerbada que nos fazia sentir parte de uma qualquer vanguarda cultural, mesmo que muitos de nós, como era o meu caso, ainda vivêssemos em casa dos pais, a nossa ânsia de mundo era engolida a tragos sôfregos de desejo e má poesia.

De vez em quando a cidade estremecia com raves clandestinas em armazéns devolutos em Xabregas, concertos de bandas sem nome e uma vaga sensação de que estávamos a assistir ao nascimento de um novo mundo. Tudo isto num fervor pré-Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, o momento em que acreditámos colectivamente que a modernidade finalmente tinha chegado a Portugal.

De entre esses fenómenos alternativos que pontuavam por uma Lisboa em busca de si própria destacava-se o cabaret circense dos Irmãos Catita, projeto paralelo do artista plástico Manuel João Vieira, famoso pelos seus Ena Pá 2000 e um talento raro para cantar atrocidades com a ternura de um urso panda com excesso de álcool no sangue. O público, feito maioritariamente por uma juventude à deriva, reconhecia-se na sua ironia corrosiva e na sua recusa sistemática de levar o país a sério, uma qualidade que, infelizmente, o país não soube retribuir.

Três décadas depois, o nome de Manuel João salta agora para a ribalta política, desta vez incarnando o seu perene Candidato Vieira. Com boné de comandante da TAP, gravata demasiado grande e um ar de meliante do Caís do Sodré, o nosso velho Yorick da contemporaneidade nacional invadiu o espaço público com a sua ironia impiedosa. O espanto foi tal que alguns comentadores chegaram a perguntar quem era aquela criatura distópica e o porque desse tempo de antena num teatro político que se finge de sério, mas que tantas vezes é apenas trágico-cómico.

Portugal, de facto, não cultiva o humor. A nossa política muito menos, habituada como está ao cinzentismo burocrático dos gabinetes e da retórica parlamentar. Ao contrário do Reino Unido, onde um tal Lord Buckethead se candidatou defendendo a venda de Nigel Farage às peças e concursos de fato de banho nos debates políticos. Ou o Brasil, onde o palhaço Tiririca foi eleito com o slogan “pior do que tá não fica”.

Talvez seja por isso que tenha escandalizado tanto a proposta de canalizar vinho para todas as casas, proibir as doenças por decreto ou extinguir o Ministério da Educação. Não por serem absurdas, mas porque expõem a verdadeira natureza desta campanha, uma eleição presidencial feita num deserto emocional, vazio de carisma, empatia e visão, mesmo com os seus 8 candidatos e 28 debates televisivos para nos convencer a votar neles. O mais alto cargo da nação parece nivelado por baixo, já não há estadistas ou políticos que se possa apreciar e sem que alguém se apresente como alternativa concreta ao presidente cessante, ele próprio o mais básico dos nossos Presidentes da República, mesmo mais que Cavaco Silva, espécie de espantalho cívico, feito de lata, palha e ausência de coração.

O esvaziamento da nossa classe política, reduzida em apenas uma geração ao estridente Ventura, o abominável Almirante, o inócuo, invisível, Seguro e o mini-Marcelo que é Marques Mendes, criou o terreno perfeito para que o Candidato Vieira surja como uma lufada de ar fresco no bafio sonolento da nossa tristeza nacional. E se o país se assusta com ele, talvez o problema não esteja no humor. Talvez esteja no facto de a realidade ser agora tão absurda que a sátira já nem parece sátira, mas um espelho vivo da nossa desgraça.

 

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