O Candidato Vieira
Nos anos 90, Lisboa fervilhava com uma pulsão indefinida
feita em partes iguais de restos do pós-Estado Novo e grandes aspirações
europeias, pelo meio, drogas, contracultura, angústia adolescente e uma
inocente convicção de que o mundo era a nossa ostra. Antes do Lux, essa catedral
do hedonismo urbano, a noite lisboeta era feita de Bananas, Alcântara Mar e do
sempre ubíquo Bairro Alto, onde, entre o Estádio, o Frágil, o Mahjong e “As Primas”,
numa peregrinação pagã regada a Sagres, B52’s e uma vaidade exacerbada que nos
fazia sentir parte de uma qualquer vanguarda cultural, mesmo que muitos de nós,
como era o meu caso, ainda vivêssemos em casa dos pais, a nossa ânsia de mundo
era engolida a tragos sôfregos de desejo e má poesia.
De vez em quando a cidade estremecia com raves clandestinas
em armazéns devolutos em Xabregas, concertos de bandas sem nome e uma vaga
sensação de que estávamos a assistir ao nascimento de um novo mundo. Tudo isto
num fervor pré-Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, o momento em que
acreditámos colectivamente que a modernidade finalmente tinha chegado a
Portugal.
De entre esses fenómenos alternativos que pontuavam por uma
Lisboa em busca de si própria destacava-se o cabaret circense dos Irmãos
Catita, projeto paralelo do artista plástico Manuel João Vieira, famoso pelos seus
Ena Pá 2000 e um talento raro para cantar atrocidades com a ternura de um urso
panda com excesso de álcool no sangue. O público, feito maioritariamente por
uma juventude à deriva, reconhecia-se na sua ironia corrosiva e na sua recusa
sistemática de levar o país a sério, uma qualidade que, infelizmente, o país
não soube retribuir.
Três décadas depois, o nome de Manuel João salta agora para
a ribalta política, desta vez incarnando o seu perene Candidato Vieira. Com
boné de comandante da TAP, gravata demasiado grande e um ar de meliante do Caís
do Sodré, o nosso velho Yorick da contemporaneidade nacional invadiu o espaço
público com a sua ironia impiedosa. O espanto foi tal que alguns comentadores
chegaram a perguntar quem era aquela criatura distópica e o porque desse tempo
de antena num teatro político que se finge de sério, mas que tantas vezes é
apenas trágico-cómico.
Portugal, de facto, não cultiva o humor. A nossa política
muito menos, habituada como está ao cinzentismo burocrático dos gabinetes e da
retórica parlamentar. Ao contrário do Reino Unido, onde um tal Lord Buckethead
se candidatou defendendo a venda de Nigel Farage às peças e concursos de fato
de banho nos debates políticos. Ou o Brasil, onde o palhaço Tiririca foi eleito
com o slogan “pior do que tá não fica”.
Talvez seja por isso que tenha escandalizado tanto a
proposta de canalizar vinho para todas as casas, proibir as doenças por decreto
ou extinguir o Ministério da Educação. Não por serem absurdas, mas porque
expõem a verdadeira natureza desta campanha, uma eleição presidencial feita num
deserto emocional, vazio de carisma, empatia e visão, mesmo com os seus 8
candidatos e 28 debates televisivos para nos convencer a votar neles. O mais
alto cargo da nação parece nivelado por baixo, já não há estadistas ou políticos
que se possa apreciar e sem que alguém se apresente como alternativa concreta
ao presidente cessante, ele próprio o mais básico dos nossos Presidentes da
República, mesmo mais que Cavaco Silva, espécie de espantalho cívico, feito de
lata, palha e ausência de coração.
O esvaziamento da nossa classe política, reduzida em apenas
uma geração ao estridente Ventura, o abominável Almirante, o inócuo, invisível,
Seguro e o mini-Marcelo que é Marques Mendes, criou o terreno perfeito para que
o Candidato Vieira surja como uma lufada de ar fresco no bafio sonolento da
nossa tristeza nacional. E se o país se assusta com ele, talvez o problema não
esteja no humor. Talvez esteja no facto de a realidade ser agora tão absurda
que a sátira já nem parece sátira, mas um espelho vivo da nossa desgraça.


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