O futuro da esquerda
O tema da refundação da esquerda democrática tem sido
amplamente debatido, nos últimos anos, um pouco por todo o mundo ocidental. A
ameaça do populismo, da extrema-direita e a deriva demagógica e polarizadora de
certos extremismos “woke” colocaram sob enorme pressão os partidos
tradicionalmente socialistas ou social-democratas.
Nos Estados Unidos da América, o bipartidarismo funcionou,
durante décadas, como uma espécie de tampão ao crescimento de franjas radicais,
tanto à esquerda como à direita. Se, por um lado, os movimentos sindicais e,
por outro, os radicais evangélicos sempre foram protagonistas relevantes do
processo político americano, o espírito “catch-all” de Republicanos e
Democratas permitiu, durante muito tempo, controlar a influência desses
sectores mais extremados.
Na Europa, mais plural e, em boa medida, mais confusa, o
processo sempre foi mais colorido, para não dizer caótico, com uma profusão de
pequenos partidos sectoriais dedicados a bandeiras ideológicas específicas. Do
ambientalismo aos direitos laborais, passando mais recentemente pelas questões
identitárias e de género, numa fragmentação do espaço político tradicional.
A sobrevivência dos partidos moderados do “grande centrão” assentou
historicamente na manutenção de um equilíbrio delicado entre as forças nem
sempre consensuais da economia de mercado e os valores do Estado Social.
Poderíamos recuar a Tony Blair e à sua “Terceira Via” para assinalar o início
do fim desse consenso, mas a queda decisiva da social-democracia dá-se, em
grande medida, em 2008, com o colapso do Lehman Brothers e o célebre mantra do “too
big to fail”.
Obama e diversos líderes europeus, ao salvarem a banca
enquanto deixavam vastas camadas da população afundar-se, destruíram os frágeis
alicerces desse equilíbrio, abrindo a porta ao avanço de populistas e
extremistas de ambos os lados. A dupla experiência traumática da grande crise
financeira e do abalo social provocado pela COVID gerou uma sensação de
orfandade política e ideológica numa maioria que se viu privada daquilo que é o
fulcro da democracia: a esperança num futuro melhor. Acabando por tombar nos
braços do voto de protesto radical.
À hora em que escrevo, cerca de 12 milhões de eleitores
nova-iorquinos dirigem-se às urnas para eleger o seu novo Mayor, numa eleição
já descrita como a mais importante do século nesta cidade fundamental do
imaginário político e económico americano. Surpreendentemente, o front-runner
é Zohran Mamdani, até há pouco tempo um desconhecido jovem político de origem
islâmica, assumidamente socialista.
Numa cidade onde perto de 17% da população vive abaixo do
limiar da pobreza e que enfrenta desafios gigantescos nas áreas sociais
essenciais, como habitação, educação, mobilidade e infraestruturas, Mamdani
construiu uma candidatura alavancada por um carisma invulgar. Desafiou o establishment
democrata ao derrotar um dos seus barões locais, Andrew Cuomo, e combinou uma
intensa presença no terreno, feita de ações porta a porta e encontros
comunitários, com uma comunicação digital eficaz. As suas propostas,
frequentemente rotuladas de “radicais”, incluem o congelamento das rendas,
transportes públicos gratuitos, taxação da riqueza e supermercados municipais com
preços regulados.
Independentemente do resultado, Mamdani deixa claro que a
refundação da esquerda democrática exige um retorno às suas bases fundadoras: o
primado da pessoa humana, a defesa intransigente da dignidade social e o
combate frontal à ditadura do capital que molda, hoje, grande parte das nossas
vidas.
Na cidade que viu nascer Wall Street e os seus “vampiros” talvez
seja precisamente o resgate da democracia social das mãos de um capitalismo
cada vez mais selvagem que possa, ainda, salvar o futuro das sociedades
democráticas e, com elas, do próprio socialismo.


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