Balas e brioches
Diz-se que ao se aperceber dos gritos da turba que marchava
às portas de Versailles, Marie Antoinette, terá perguntado porque gritava a
multidão? À resposta - porque têm fome, a mulher de Louis XVI terá respondido -
dêem-lhes brioches. Verdade ou não, a frase tornou-se símbolo do desfasamento,
da distância, ou detachment, na sua formulação inglesa, se quisermos,
que talvez seja a mais adequada, entre governantes e governados. Impregnada
pelos mais puros ideias - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - a Revolução
Francesa, que em breve fará 250 anos, foi uma sublevação das massas
desfavorecidas contra a elite, cada vez mais distante e abjeta, presa nos seus
faustosos castelos e pompa extravagante. À época, o maior grito da moda
masculina eram os calções de seda que os aristocratas usavam e a grande multidão
popular para sempre ficaria conhecida como os sans-culottes. Por mais
bela e justa que fosse a origem desse grande movimento popular, que ainda hoje
marca a geografia política mundial, a revolução terminou num enorme banho de
sangue e na vertigem ditatorial napoleónica.
Nos últimos dois dias, numa das primeiras iniciativas de
António Costa, os líderes europeus reuniram-se no Palácio d’Egmont para uma
reunião informal dedicada aos temas da defesa onde marcaram presença dois
convidados especiais, Mark Rutte, secretário-geral da NATO, e Kier Starmer, o
primeiro-ministro inglês. Rutte, que é bom não esquecer era o primeiro-ministro
holandês quando o seu execrável ministro das finanças, Dijsselbloem, lançou
sobre os países latinos o anátema dos copos e das mulheres, já tinha estado em
Lisboa, na última semana, avisando-nos para a ameaça russa, cujos navios e
mísseis se aproximam das costas portuguesas, como as potentes ondas do canhão
da Nazaré. Tal como esse outro paladino do povo tornado empedernido falcão,
Mário Draghi, que marcou presença numa reunião do conselho de estado para
enfatizar a urgente necessidade de uma deriva militarista, aconselhando
avultados investimentos em armamento como o novo rumo estratégico da economia
europeia.
Depois de se terem colocado nas mãos da indústria
farmacêutica, de formas pouco transparentes, em que biliões dos nossos impostos
foram injetados em grandes multinacionais por causa de um medo indizível e
não identificado, os líderes europeus preparam-se para ir para a cama com o
complexo industrial militar, desta vez sob a égide do fantasma de Putin. A
Europa, em tempos um bastião da paz e da concórdia, parece agora querer
arrastar-se para uma militarização abominável e sem sentido, numa amnésia
coletiva dos seus mais altos representantes sobre o que foram as duas grandes tragédias
do século XX.
Numa das suas últimas declarações públicas, Antony Blinken,
secretário de estado de Joe Biden, apelava cinicamente a que os ucranianos baixassem
a idade do recrutamento militar, como forma de alimentar a máquina de extermínio
de uma guerra suja, numa Ucrânia onde Zelensky já veio admitir que apenas
recebeu metade dos mais de 175 biliões de dólares em ajudas financeiras dos EUA,
para uma guerra determinada pelos
interesses financeiros dos grandes conglomerados financeiros, a quem
praticamente todos os políticos se submetem, como a Black Rock, por exemplo, um
fundo que é detentor de parte da Pfizer e um dos maiores investidores mundiais
na indústria de defesa.
Desde 2008 que o mundo se debate com sucessivas ignomínias,
em que os mais pobres são alimento fácil para a voracidade dos falcões, banca, alta
finança, farmacêuticas e indústria militar. Talvez quando os nossos filhos
forem chamados a perder a vida nas fronteiras do Leste, ou aqui, nas águas do
Atlântico, a grande massa dos descamisados do mundo, os eternos sans-culottes,
possa acordar da sua letargia e marchar novamente sobre os palácios do poder,
onde ao som do Hino da Alegria um qualquer António Costa se comova com um banal
- sirvam-lhes brioches...