Vivemos, quase há um ano e meio, mergulhados nesta
tempestade pandémica e temos as nossas vidas subjugadas à autoridade dos
critérios epidemiológicos dos especialistas em Saúde Pública. Passado todo este
tempo, continuamos, em grande medida, a abordar o vírus SARS-CoV-2 como se
fosse um vírus desconhecido e, com isso, estamos lentamente a destruir os
alicerces mais profundos da nossa vida em comunidade, agudizando o fosso entre
classes sociais e criando clivagens e desigualdades que perdurarão no tempo,
muito para lá do termino desta pandemia.
Embora o conceito de Saúde Pública só tenha ganho
notoriedade nestes últimos tempos, Portugal tem uma longa tradição nesta
disciplina médica. Um dos seus pais foi o médico iluminista Ribeiro Sanches, natural
de Penamacor, companheiro de Diderot, Voltaire, Rousseau, entre outros, na Encyclopédie,
que foi um conselheiro fundamental do Marquês de Pombal na reconstrução da
cidade de Lisboa, após 1755. Mais recentemente, o médico Arnaldo Sampaio, pai
do ex-Presidente da República Jorge Sampaio, lançou as bases de uma Saúde
Pública que, nas suas próprias palavras, era a ciência “da preservação
integral da saúde do Homem”, com ênfase, diria eu, na palavra Integral e no
H grande da palavra Homem. Nesta pandemia, não têm sido poucos os especialistas
que têm alertado para a necessidade de abordagens de Saúde Pública que atentem
à baixa perigosidade e capital sazonalidade do vírus, como o Dr. Jorge Torgal;
para a importância de perspetivar a pandemia lançando mão de outras ciências,
como a psicologia, a sociologia, a economia, percebendo-se o papel fulcral que
os diferentes agregados familiares e populacionais desempenham na sua
propagação, como tem defendido o insuspeito Dr. Francisco George, na esteira do
que o próprio denomina como Nova Saúde Pública; ou, ainda, o papel fundamental
que, em Saúde Pública, as estratégias de comunicação desempenham na cativação e
cooperação das populações com os procedimentos clínicos e medidas a
implementar, como explica o Dr. Constantino Sakellarides.
Infelizmente, nos Açores, todo este conhecimento parece ser
letra morta às mãos de uma visão estatística e semafórica da pandemia, que olha
para as ilhas, e para os 19 concelhos, como se fossem compartimentos estanques
e fixamente delineados em quadros de Excel e gráficos de Power Point. Uma Saúde
Pública em que as pessoas são meros transportadores do Vírus, uma espécie de
Ubers da contaminação. Ou, o pior de tudo, que usa como principal utensílio de
sustentação das suas decisões e estratégias, os níveis de incidência da
contaminação, que se alicerçam em algo tão falível e cientificamente
questionável como são os testes RT-PCR, que detetam a presença de matéria viral
e não a sua capacidade real de infeção. Mas não entremos, por agora, por aí.
O que importa realçar, neste momento, é que a estratégia de
combate à pandemia nos Açores procura, pura e simplesmente, tal como em março
de 2020, conter a disseminação do vírus e concentra-se, apenas, no resultado
positivo de um teste que não determina se a pessoa está ou não com a doença. Esta
estratégia não tem em linha de conta todos os avanços científicos já feitos na
análise de grupos de risco, a sua demografia, taxas de letalidade, contaminação
por assintomáticos, sazonalidade, transmissibilidade, vacinação e, não menos
importante, as devastadoras consequências socias e económicas que o combate à
pandemia têm tido. Ao fim de um ano e meio de pandemia importaria perceber que
o sofrimento das crianças, dos jovens, das famílias, dos trabalhadores e dos
empresários é tão merecedor de atenção como o dos pacientes Covid. A
proporcionalidade é, afinal, uma das matrizes do Estado de Direito.
A questão dos Direitos Fundamentais é, efectivamente, algo
extremamente importante de se ater em maio de 2021. Como bem explica Henrique
Pereira dos Santos, “a Liberdade não é um pormenor, é uma questão central
que deve ser ponderada ao mesmo nível que outros fatores no momento da tomada
de decisão.” Os sucessivos ataques à Constituição, ou à própria Lei de
Bases da Saúde, que garantem o direito ao trabalho e ao lazer, passando-se de
um Estado de Emergência para um verdadeiro Estado de Permanência, são uma
inaceitável inversão do Contrato Social e do Estado de Direito, em que são os Cidadãos
que são colocados ao serviço do Estado e não, como deveria ser, o Estado a
servir os Cidadãos. É neste ponto, e pegando no caso da ilha de São Miguel, não
por qualquer bairrismo espúrio, mas porque não deve ser tratado de forma igual
coisas que são na verdade diferentes, que importa questionar o Governo Regional
dos Açores sobre a razoabilidade e a proporcionalidade das suas opções.
Sabendo-se que esta é a ilha com maior capacidade hospitalar instalada, aliás o
próprio Secretário da Saúde afirmou que o Plano de Contingência do HDES tinha
previstas até 80 camas para tratamento Covid, não é compreensível, nem
económica ou socialmente aceitável, que se tenha, de ânimo leve, optado por
forçar um confinamento generalizado a toda a ilha apenas porque o número de
casos ativos subia, enquanto o número de internados nunca ultrapassou os 20. Não
é admissível que seja a população da ilha de São Miguel a ser chamada a
proteger um débil Serviço Regional de Saúde, quando é obrigação do Governo
garantir que é o HDES, e o SRS no seu todo, que está devidamente capacitado
para salvar a população da ilha e, por maioria de razão, dos Açores.
A tudo isto acresce aquele que é hoje o maior problema desta
pandemia: a grave questão dos prejuízos na educação e das consequências
psicológicas, nas crianças e jovens e nas suas famílias, que levam por junto já
quase seis meses sem ensino presencial, e a destruição de largos sectores da
economia, com particular acuidade na cultura, no lazer, na promoção da saúde
física e no bem-estar e, finalmente, no Turismo. Se há uma linha da frente da
pandemia, para usar a metáfora bélica tão na moda na boca dos políticos, ela é
composta, hoje, por estas centenas de pessoas anónimas que sofrem as agruras da
falta de trabalho e de receitas ao mesmo tempo que, esse mesmo Estado, lhes
impõe o cumprimento de todas a suas despesas e obrigações, principalmente para
com o próprio Estado. Ao contrário daquilo que é a narrativa demagógica dos
Governos, as ajudas anunciadas são insuficientes, são burocráticas e na maioria
dos casos não chegam efetivamente às pessoas. Mais de 20 dias depois de um
populista anúncio de injeção de 2 milhões de euros, do programa Apoiar.pt, que
numa avaliação por alto, do número de candidaturas, significaria pouco mais de
1000€ por empresa, a realidade é que esse dinheiro não chegou ainda ao terreno.
É por isso que, neste momento, se afigura como fundamental
rever as estratégias de combate à pandemia e os critérios a ela aplicados.
Desde logo, importaria utilizar como fator de ponderação principal o número de
internamentos, em lugar da taxa de incidência de 100/100 mil. Em vez de se
colocar todo o ónus do combate à pandemia nos cidadãos, é ao Estado que compete
assegurar os meios de combate ao vírus e à doença de Covid 19, protegendo os
grupos de risco, assegurando as condições de tratamento dos casos mais graves e
incrementando a vacinação da população. Ao mesmo tempo, e por outro lado, seria
imprescindível instituir instrumentos eficazes e diretos de ajuda às famílias,
às empresas e aos trabalhadores, que permitam salvar a economia e preparando,
desde já, um Plano de Recuperação Económica da Ilha de São Miguel. Sob o risco
de, não o fazendo, estarmos a hipotecar o futuro e a condenar-nos, a todos, indiscriminadamente,
desde o reformado, ao empresário, passando por funcionários públicos e demais
trabalhadores, a décadas de austeridade e sofrimento, a que a gravíssima crise
económica que iremos certamente viver obrigará. A perda de criação de riqueza
na ilha de São Miguel, o aumento de desemprego associado, e o consequente desequilíbrio
da balança contributiva, são os componentes inflamáveis de um cocktail
explosivo de depressão económica, instabilidade social e pobreza, que farão da
crise de 2008 uma brincadeira de crianças ao pé do verdadeiro tsunami que aí
vem.
É urgente que os políticos sintam mais e quantifiquem menos,
que tenham verdadeiramente noção das agruras de quem sofre e se compadeçam com
as milhares de vidas que, nesta pandemia, perderam a sua Vida. Insistir neste
mesmo caminho, que faz das pessoas meros números numa estatística, e da vida um
simples relatório clínico, é salvar “vidas” até não haver mais vidas para
salvar.
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