O Território do Vazio
Nemésio, na sua busca pela açorianidade, identificou três
tipos de açorianos – o picaroto, o terceirense e o micaelense. Sobre este
último, pintou-o segurando o cabo da enxada e lavrando a terra “já
penetrável ao tubérculo”. Nesta identificação telúrica das gentes açorianas
há uma espécie de paradoxo insular, rodeado de mar por todos os lados o
açoriano, em particular o micaelense, vira as costas ao oceano e faz-se senhor
da terra, enraizando-se cada vez mais no interior da ilha e olhando o mar com
distância e, muitas das vezes, temor.
A ligação do açoriano com o mar foi sempre relativamente ambígua.
A condição insular obriga a um relacionamento estreito com o oceano, mas este
mar, o inclemente Atlântico, onde nos situamos, castiga e enclausura. Nos
Açores, posto de abastecimento nos cruzamentos entre oceanos e continentes, o
mar foi sempre território de medos e angústias. De lá vinham os piratas e as
tempestades, cemitério vivo de batalhas e de naufrágios e, ao longo do tempo,
porta de saída de gentes rumo ao distante mundo da emigração. Mesmo a pesca, ou
a cabotagem, foram sempre de subsistência ou de oportunidade, remetidas ao
gueto de pequenas comunidades, tantas vezes segregadas e marginais.
Até muito recentemente, o litoral, praias, poças e
portinhos, eram lugar de baldio e atrevimento, largados à selvagem voracidade
da juventude ou à ousadia da necessidade dos que aí buscavam amparo para a
fome. A ideia do mar, ou desse espaço que o separa da terra, como lugar de
prazer, de conforto e de alegria é extraordinariamente recente. Os Areais de
Santa Bárbara são disso um exemplo, salvos por surfistas e ambientalistas da
avidez dos saqueadores de areia. E é isso que explica o impressionante abandono
a que tantos outros lugares, de igual ou maior potencial, foram sucessivamente deixados,
ao longo de décadas, até o declínio e a ruína se apoderar de muitos deles, tal
como agora, tragicamente aconteceu, no Porto de Santa Iria.
Bem sei que é injusto generalizar e que se tornou repetitivo
colocar a todos nessa categoria demagógica de “os políticos”, mas o problema é
que as situações são tantas e tão recorrentes, de todos os partidos, que não se
consegue não utilizar esse epiteto, hoje tão depreciativo, para classificar
toda uma classe de responsáveis públicos pela desgraça que se nos acometeu. O
velho Porto de Santa Iria, é um dos mais belos e singulares lugares destas
ilhas. Uma localização única, com uma história riquíssima. Os problemas de
erosão, ou de manutenção, são conhecidos há décadas, por várias gerações de
políticos, de ambos os lados do espectro partidário, com dezenas de promessas e
de projetos, milhões de investimentos anunciados e o resultado foi a sua
destruição, e, agora, com um novo rol de promessas e datas num caderno de
encargos que inevitavelmente já não vai ser o mesmo.
Nos Açores, como as ribeiras que correm para o mar, despejam-se
rios de dinheiro em coisas inúteis, em projetos horrendos, de interesse
duvidoso, e sistematicamente negligencia-se o que é realmente relevante e
significativo para a transformação de uma identidade e para a tão propalada
sustentabilidade do arquipélago. Pegando apenas em São Miguel, a praia do Monte
Verde, o Ilhéu, a Piscina das Feteiras, o Lombo Gordo, a Amora e o Degredo… e
tantos outros lugares perdidos nesse “território do vazio”, como lhe
chamou o historiador Alain Corbin, que é a orla marítima e o litoral.
São estes acontecimentos, tão tragicamente repetidos, que me
levam a acreditar que os políticos são insensíveis à beleza, que, com o tempo,
se tornam impermeáveis ao encanto dos lugares, da sua história e do legado do
que nos rodeia e os devia, em absoluto, preocupar e ocupar. Talvez o que choque
mais neste abandono frio e insensível do que nos é próximo e essencial não sejam
as promessas incumpridas ou a farsa da sustentabilidade, mas essa ditadura demolidora
do desleixo, do abandono e da simples falta de gosto.
Sem comentários:
Enviar um comentário