quarta-feira, 16 de abril de 2025

Speakers' Corner 28

O Território do Vazio

Nemésio, na sua busca pela açorianidade, identificou três tipos de açorianos – o picaroto, o terceirense e o micaelense. Sobre este último, pintou-o segurando o cabo da enxada e lavrando a terra “já penetrável ao tubérculo”. Nesta identificação telúrica das gentes açorianas há uma espécie de paradoxo insular, rodeado de mar por todos os lados o açoriano, em particular o micaelense, vira as costas ao oceano e faz-se senhor da terra, enraizando-se cada vez mais no interior da ilha e olhando o mar com distância e, muitas das vezes, temor.

A ligação do açoriano com o mar foi sempre relativamente ambígua. A condição insular obriga a um relacionamento estreito com o oceano, mas este mar, o inclemente Atlântico, onde nos situamos, castiga e enclausura. Nos Açores, posto de abastecimento nos cruzamentos entre oceanos e continentes, o mar foi sempre território de medos e angústias. De lá vinham os piratas e as tempestades, cemitério vivo de batalhas e de naufrágios e, ao longo do tempo, porta de saída de gentes rumo ao distante mundo da emigração. Mesmo a pesca, ou a cabotagem, foram sempre de subsistência ou de oportunidade, remetidas ao gueto de pequenas comunidades, tantas vezes segregadas e marginais.  

Até muito recentemente, o litoral, praias, poças e portinhos, eram lugar de baldio e atrevimento, largados à selvagem voracidade da juventude ou à ousadia da necessidade dos que aí buscavam amparo para a fome. A ideia do mar, ou desse espaço que o separa da terra, como lugar de prazer, de conforto e de alegria é extraordinariamente recente. Os Areais de Santa Bárbara são disso um exemplo, salvos por surfistas e ambientalistas da avidez dos saqueadores de areia. E é isso que explica o impressionante abandono a que tantos outros lugares, de igual ou maior potencial, foram sucessivamente deixados, ao longo de décadas, até o declínio e a ruína se apoderar de muitos deles, tal como agora, tragicamente aconteceu, no Porto de Santa Iria.

Bem sei que é injusto generalizar e que se tornou repetitivo colocar a todos nessa categoria demagógica de “os políticos”, mas o problema é que as situações são tantas e tão recorrentes, de todos os partidos, que não se consegue não utilizar esse epiteto, hoje tão depreciativo, para classificar toda uma classe de responsáveis públicos pela desgraça que se nos acometeu. O velho Porto de Santa Iria, é um dos mais belos e singulares lugares destas ilhas. Uma localização única, com uma história riquíssima. Os problemas de erosão, ou de manutenção, são conhecidos há décadas, por várias gerações de políticos, de ambos os lados do espectro partidário, com dezenas de promessas e de projetos, milhões de investimentos anunciados e o resultado foi a sua destruição, e, agora, com um novo rol de promessas e datas num caderno de encargos que inevitavelmente já não vai ser o mesmo.

Nos Açores, como as ribeiras que correm para o mar, despejam-se rios de dinheiro em coisas inúteis, em projetos horrendos, de interesse duvidoso, e sistematicamente negligencia-se o que é realmente relevante e significativo para a transformação de uma identidade e para a tão propalada sustentabilidade do arquipélago. Pegando apenas em São Miguel, a praia do Monte Verde, o Ilhéu, a Piscina das Feteiras, o Lombo Gordo, a Amora e o Degredo… e tantos outros lugares perdidos nesse “território do vazio”, como lhe chamou o historiador Alain Corbin, que é a orla marítima e o litoral.

São estes acontecimentos, tão tragicamente repetidos, que me levam a acreditar que os políticos são insensíveis à beleza, que, com o tempo, se tornam impermeáveis ao encanto dos lugares, da sua história e do legado do que nos rodeia e os devia, em absoluto, preocupar e ocupar. Talvez o que choque mais neste abandono frio e insensível do que nos é próximo e essencial não sejam as promessas incumpridas ou a farsa da sustentabilidade, mas essa ditadura demolidora do desleixo, do abandono e da simples falta de gosto.

Sem comentários: