sábado, 3 de outubro de 2020

lamento por uma solidão incompleta

 


O surf nunca foi uma actividade intelectual e não consta que os surfistas sejam gente de grandes leituras. A fama de vagabundos de praia é, aliás, inteiramente merecida. No seu todo, os surfistas são um grupo de alienígenas, que vivem num mundo próprio e relativamente isolado do resto da sociedade, auscultando as cartas meteorológicas e desligando-se de terrenos sólidos para deslizar sobre a superfície do mar, levados pela energia das ondas. O máximo de conhecimento necessário a um surfista é saber ler o mar, o que, em boa verdade, não é de somenos, mas citar Sophia ou Ruy Belo, ou Whitman e Twain, não é propriamente uma qualidade que faça falta para passar uma rebentação ou para sair de um tubo num closeout em Carcavelos. As próprias revistas de Surf foram sempre mais um caleidoscópio de imagens do que um repositório de saber e não creio que ninguém, alguma vez, tenha comprado uma revista de Surf exclusivamente pela relevância dos seus textos. No entanto, qualquer cultura, e o Surf tem permanentemente essa ambição de se considerar uma cultura, uma filosofia de vida até, dirão alguns, qualquer cultura, dizia eu, para poder ser tida como tal tem que necessariamente ser fixada, primeiro em hábitos, depois em tradições e, finalmente, num corpo sólido de artefactos, textos, que possam ser preservados e transmitidos através das gerações. Aqui os surfistas dir-me-ão que a essência da cultura do Surf reside no acto de apanhar ondas e que esse gesto é puramente pessoal e intransmissível. Provavelmente a imensa dificuldade do Surf em se relacionar com a sociedade provirá, também, dessa sua natureza intrinsecamente solitária. Mas, tal como explicou o grande Harold Bloom, que não era surfista, “saber ler é um dos grandes prazeres que a solidão nos pode dar” e o Surf também. E essa solidão específica do Surf é também uma das razões pelas quais se tornou sempre tão difícil traduzir em palavras, pelo menos em palavras que possam ser entendidas pelo outro, os sentimentos e as emoções características daquelas frações de segundo em que, como que sem peso, ausentes de gravidade, deslizamos, sem espaço nem tempo, como que numa realidade alternativa, sobre as ondas. Contam-se pelos dedos da mão os textos e os autores que fixaram essas emoções, que as traduziram em palavras, em linguagens perceptíveis por outros, fora do universo dos surfistas. Mas, ao longo destes 100 anos de história moderna do Surf o mais próximo que a nossa cultura chegou de ter uma Bíblia foi a Surfer. A revista criada em 1960 por John Severson, como panfleto promocional de um dos seus filmes, granjeou, ao longo de décadas, a fama e o proveito de ser o órgão de comunicação oficial da cultura do Surf. Para além de pelas suas páginas terem passado alguns, se não todos, os melhores fotógrafos, nela surgiram muitos dos principais autores daquilo a que podemos chamar uma escrita de Surf. Nomes como Drew Kampion, Derek Hynd, Dave Parmenter, Steve Hawk, entre outros são os pilares daquilo a que podemos chamar o cânone do Surf. Pode-se argumentar que tal coisa não existe ou até que, existindo, é perfeitamente inútil para quem queira apenas ler a linha entre um bottom-turn e um off-the-lip. Mas, a sobrevivência do Surf, como parte da cultura moderna e a sua sobrevivência futura, para lá da subida do nível do mar, da acidificação dos oceanos e da queda das sociedades ocidentais numa distopia urbana e internauta passará, inevitavelmente, por esses textos. Existem outras revistas, a Surfers Journal por exemplo, ou outros autores, que nunca escreveram na Surfer, como é o caso do hoje célebre William Finnegan. Mas, a relevância da Surfer para a consolidação do que é o Surf e a sua Cultura é inigualável. Pelo que dizem as notícias a Surfer terá acabado hoje, com o despedimento de todo o seu staff. Não é só o fim de uma era é, também, o fim de uma certa ideia de Surf. E, pelo menos para mim, que fui assinante durante os últimos 20 anos é o fim de uma outra solidão, a do prolongamento em terra, em infindáveis horas de leitura, da flutuação etérea das ondas no mar em movimento…

1 comentário:

Julio Adler disse...

Muito bem refletido em voz alta esse texto que trata dos nossos vícios.
Obrigado Pedro!