“À Espera de Godot”
Samuel Beckett, poeta, romancista e dramaturgo irlandês, um
dos mais importantes escritores do Séc. XX, escreveu que “nada é mais real
do que o nada”. Em “À Espera de Godot”, a sua peça mais famosa, duas
personagens, Vladimir e Estragon, estão parados na beira de uma estrada, ao
centro de um cenário nu, onde apenas uma árvore pontua o vazio, o nada. Os dois
esperam alguém, ou algo, chamado Godot. Enquanto esperam, Vladimir e Estragon, conversam
sobre a vida, a passagem do tempo, a existência, numa espécie de melancolia
resignada. São duas personagens num diálogo onde nada acontece e onde, aparentemente,
nada se diz. Ao longo da peça apenas mais três personagens surgem no enredo.
Pozzo, Lucky e um jovem rapaz que, no final, nos revela que Godot, afinal, não
virá. “À Espera de Godot”, na sua despida contenção cénica e narrativa, é
considerada pelos críticos um dos momentos altos do chamado “teatro do
absurdo”
Nas últimas semanas, talvez meses, o país tem estado ansiosamente
em suspenso à espera do seu Godot. E, Pedro Nuno Santos e Luis Montenegro, como
Vladimir e Estragon, conversam, numa espécie de penoso e cínico teatro do
absurdo, sobre esse Godot da nossa existência que dá pelo nome de Orçamento de Estado.
Há dias, os jornais davam corpo a uma dessas conversas entre estes dois protagonistas,
com uma imagem paradigmática dessa encenação em que se transformou a nossa vida
política. Numa das salas de São Bento, Montenegro e Pedro Nuno Santos, surgem
sentados lado a lado, os corpos tensos no limiar dos assentos, as mãos juntas
sobre os joelhos fletidos, as pontas dos dedos tocando-se num triângulo
invertido, os dois emulando a postura um do outro, numa perfeita e ensaiada coreografia,
como se, de facto, a única coisa que os distinguisse fosse esses míseros 1% de diferença
no corte do IRC. No palco permanente da política espetáculo, a pose, a mímica
dos protagonistas, tornaram-se o centro de toda a comunicação. Na polaroid do
instante já nada distingue estes dois atores profissionais da dramaturgia
política, perdidos no cenário do seu próprio vazio, onde o nada se tornou tudo.
Num diálogo absurdo, os dois personagens trocam falas sobre o IRS para jovens,
jovens até aos 35 anos(!), em breve deixará de haver adultos, seremos todos jovens
indefinidamente até, um dia, acordarmos idosos sem direito a pensões. E lançam
frases sobre um corte no IRC, num país onde quase 40% das empresas não pagam IRC.
Subitamente, no meio desta discussão vazia, André Ventura, qual Pozzo, entra em
cena agitando o caos no marasmo expectante dos dois personagens principais.
Entre um Primeiro-ministro gelatinoso, tremelicando entre
linhas vermelhas, um líder da oposição acossado e titubeante, apelando,
imagine-se, de dedo em riste, a uma espécie de unidade sindical da livre
opinião partidária, e num país onde, com os serviços do Estado a desmoronarem
perante os nossos olhos a cada dia que passa, o OE tem um peso de 40% do PIB e a
rubrica do investimento é de uns miseráveis 3,5%, quem ganha é sempre o populista,
o demagógico e o antissistema, mesmo que consigo apenas traga uma sucessão de
mentiras. Porque, no final do dia, na frieza dos números e no vazio da
narrativa, como o rapaz de Godot, o que o cidadão comum quer é que lhe resolvam
os problemas básicos, coisas tão simples como a confiança nas instituições e não
ter um país em que a corrupção surja no topo das preocupações das pessoas, emprego
e habitação, uma administração pública eficiente, com hospitais a funcionar,
uma justiça que não seja uma calamidade pública, com interrogatórios judiciais
emitidos em prime time da TV, uma economia em que a TSU não pese 35%
sobre o salário real, e escolas com professores, auxiliares e, já que é para
ter computadores, que ao menos os ponham a tempo e horas nas mãos dos alunos…
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