quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Speakers' Corner 3

O Gambito de Rainha de Montenegro

Nesta acirrada e intensa partida do xadrez político pátrio, em que nos vemos mergulhados cotidianamente, numa vertigem quase caleidoscópica, os dois grandes-mestres da arte do fianqueto partidário digladiam-se, em avanços e recuos táticos, sobre o tabuleiro da vida do cidadão comum, pondo e dispondo dos peões, que somos todos nós, como se só o Rei fosse importante para o resultado final, que é a sua manutenção e perpetuação no poder.

Quais Karpov e Kasparov do grande centrão político, Montenegro e Pedro Nuno Santos, afinam jogadas e calibram movimentos, em sucessões de ataques e defesas, numa partida disputada à melhor de três. Depois de um empate com cedência na primeira partida eleitoral, Montenegro saiu vencedor deste segundo round, com um Gambito de Rainha inesperado e sensacional, sacrificando dois peões fiscais para encurralar Nuno Santos num xeque-mate orçamental. Salvaguardado na extensão do calendário eleitoral e com Nuno Santos remetido à sua defesa para lamber as feridas de um péssimo arranque, Montenegro partiu para a terceira e derradeira partida com um ataque pela sua direita, fazendo subir, em simultâneo, o Cavalo da agenda securitária e o Bispo do anti-wokismo de género, materializado no anúncio bombástico da revisão dos currículos da pobre disciplina de Cidadania.

Num tempo em que ainda se estudavam Humanidades, antes desta febre utilitarista e algorítmica das últimas décadas, em que os miúdos todos tem de ser engenheiros computacionais, talhados para grandes carreiras nas consultoras da alta finança, a cidadania era algo que se aprendia nos livros, na História e na Filosofia, lendo os clássicos, e, principalmente, na vida na rua, dentro da família e das coletividades. Era na literatura e no dia-a-dia que se aprendia as normas e os vocabulários da convivência, da tolerância, do respeito e, essencialmente, da vida em comunidade. Hoje, numa sociedade deslaçada e hiperdigitalizada, é suposto ser a escola a educar as crianças sobre as mais básicas e fundamentais regras da República e do Estado de Direito Democrático: a Igualdade e o primado da Lei.

Mas antes de nos perdermos no frenesim mediático, a discutir a frívola dicotomia entre conservadorismos bacocos e progressismos woke, talvez fosse bom ponderarmos sobre como nos desviámos, enquanto comunidades políticas, da velha máxima de que uma verdadeira Democracia é a governação da maioria com respeito pelas minorias, e não uma permanente e opressiva ditadura das mais excêntricas e diminutas minorias, sejam elas do Grupo 1143 e do inefável Juiz Fonseca e Castro, da extrema-direita, de um lado, ou os wokismos alfanuméricos dos Diogos Faros desta vida, da extrema-esquerda, do outro. Talvez fosse bom refletirmos sobre como a política deixou de ser uma disputa entre diferentes ideologias económicas e sociais para ser um combate constante entre ideologias de género, agendas populistas e memes das redes sociais transformados em chavões atrativos na boca salivante dos influencers do slogan eleitoral.

O objetivo desta nova jogada de Montenegro é claro: enquanto estivermos a discutir o “retirar de amarras ideológicas” da Cidadania, ou o “combate sem tréguas à criminalidade”, seja lá o que isso for, ninguém vai ter tempo para perguntar sobre o maior aumento das cativações de sempre, o pífio investimento público previsto ou as miseráveis previsões de crescimento económico que o ministro Miranda Sarmento levou acabrunhadamente a Bruxelas, uns rastejantes 1,7%. O problema é que, ao criar esta cortina de fumo demagógica e populista de mais polícias na rua e menos sexo nas salas de aula, cedendo calculadamente aos encantos do discurso de André Ventura, Montenegro faz tombar perigosamente o PPD para o seu estibordo, correndo o sério risco de fazer adornar o barco de vez para os braços do Chega. É que fazer política com as armas dos outros é, acima de tudo, dar-lhes razão. E entre o original e a cópia, o povo vai sempre preferir o original.

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