O Gambito de Rainha de Montenegro
Nesta acirrada e intensa partida do xadrez político pátrio,
em que nos vemos mergulhados cotidianamente, numa vertigem quase caleidoscópica,
os dois grandes-mestres da arte do fianqueto partidário digladiam-se, em
avanços e recuos táticos, sobre o tabuleiro da vida do cidadão comum, pondo e
dispondo dos peões, que somos todos nós, como se só o Rei fosse importante para
o resultado final, que é a sua manutenção e perpetuação no poder.
Quais Karpov e Kasparov do grande centrão político,
Montenegro e Pedro Nuno Santos, afinam jogadas e calibram movimentos, em sucessões
de ataques e defesas, numa partida disputada à melhor de três. Depois de um
empate com cedência na primeira partida eleitoral, Montenegro saiu vencedor
deste segundo round, com um Gambito de Rainha inesperado e sensacional,
sacrificando dois peões fiscais para encurralar Nuno Santos num xeque-mate
orçamental. Salvaguardado na extensão do calendário eleitoral e com Nuno Santos
remetido à sua defesa para lamber as feridas de um péssimo arranque, Montenegro
partiu para a terceira e derradeira partida com um ataque pela sua direita,
fazendo subir, em simultâneo, o Cavalo da agenda securitária e o Bispo do
anti-wokismo de género, materializado no anúncio bombástico da revisão dos currículos
da pobre disciplina de Cidadania.
Num tempo em que ainda se estudavam Humanidades, antes desta
febre utilitarista e algorítmica das últimas décadas, em que os miúdos todos
tem de ser engenheiros computacionais, talhados para grandes carreiras nas
consultoras da alta finança, a cidadania era algo que se aprendia nos livros,
na História e na Filosofia, lendo os clássicos, e, principalmente, na vida na
rua, dentro da família e das coletividades. Era na literatura e no dia-a-dia
que se aprendia as normas e os vocabulários da convivência, da tolerância, do respeito
e, essencialmente, da vida em comunidade. Hoje, numa sociedade deslaçada e hiperdigitalizada,
é suposto ser a escola a educar as crianças sobre as mais básicas e fundamentais
regras da República e do Estado de Direito Democrático: a Igualdade e o primado
da Lei.
Mas antes de nos perdermos no frenesim mediático, a discutir
a frívola dicotomia entre conservadorismos bacocos e progressismos woke,
talvez fosse bom ponderarmos sobre como nos desviámos, enquanto comunidades políticas,
da velha máxima de que uma verdadeira Democracia é a governação da maioria com
respeito pelas minorias, e não uma permanente e opressiva ditadura das mais excêntricas
e diminutas minorias, sejam elas do Grupo 1143 e do inefável Juiz Fonseca e Castro,
da extrema-direita, de um lado, ou os wokismos alfanuméricos dos Diogos
Faros desta vida, da extrema-esquerda, do outro. Talvez fosse bom refletirmos
sobre como a política deixou de ser uma disputa entre diferentes ideologias económicas
e sociais para ser um combate constante entre ideologias de género, agendas
populistas e memes das redes sociais transformados em chavões atrativos na boca
salivante dos influencers do slogan eleitoral.
O objetivo desta nova jogada de Montenegro é claro: enquanto
estivermos a discutir o “retirar de amarras ideológicas” da Cidadania, ou o “combate
sem tréguas à criminalidade”, seja lá o que isso for, ninguém vai ter tempo para
perguntar sobre o maior aumento das cativações de sempre, o pífio investimento público
previsto ou as miseráveis previsões de crescimento económico que o ministro
Miranda Sarmento levou acabrunhadamente a Bruxelas, uns rastejantes 1,7%. O
problema é que, ao criar esta cortina de fumo demagógica e populista de mais
polícias na rua e menos sexo nas salas de aula, cedendo calculadamente aos
encantos do discurso de André Ventura, Montenegro faz tombar perigosamente o
PPD para o seu estibordo, correndo o sério risco de fazer adornar o barco de
vez para os braços do Chega. É que fazer política com as armas dos outros é,
acima de tudo, dar-lhes razão. E entre o original e a cópia, o povo vai sempre preferir
o original.
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