Os Açores e a Doutrina Trump
Em dezembro de 1823, James Monroe, quinto presidente dos
Estados Unidos, apresentou ao Congresso uma declaração que ficaria conhecida
como Doutrina Monroe. A fórmula “América para os americanos” traduzia a
reafirmação de um isolacionismo já insinuado por George Washington e
desenvolvido por Thomas Jefferson, que concebera a ideia do “hemisfério
americano”.
Dois séculos depois, a nova Estratégia Nacional de Segurança,
um documento de pouco mais de trinta páginas divulgado na última semana, marca
o regresso dessa matriz conceptual. Os EUA deixam de se apresentar como o
“polícia global” a que nos habituámos desde a Segunda Guerra Mundial para, num
espírito America First, colocarem o interesse nacional acima de qualquer
compromisso multilateral. A prioridade passa a ser o reforço interno, assente
na autonomia industrial, tecnológica e energética, reduzindo dependências
externas, sobretudo da China, e protegendo cadeias de produção consideradas
críticas, das novas tecnologias ao armamento.
No plano geopolítico, a estratégia recentra-se no
“Hemisfério Ocidental”, recuperando de forma explícita a lógica monroísta. As
Américas e o Caribe são classificadas como regiões vitais, com foco no controlo
migratório, no combate ao narcotráfico e na limitação da influência de
potências externas. Trata-se de uma mundivisão de blocos e zonas de influência,
muito próxima, aliás, da teoria de “espaço vital” de Putin.
Quanto à Europa, o documento critica a gestão continental da
imigração e da demografia, insinuando que vários governos estão a comprometer a
própria “identidade civilizacional” europeia. Afirma mesmo que, em menos de
vinte anos, a Europa poderá ser irreconhecível do ponto de vista político e
étnico. Concorde-se ou não com esta leitura, ela revela um afastamento
estratégico da sua fronteira ocidental que a União Europeia dificilmente poderá
ignorar, tanto mais que, a oriente, há uma Ásia que se agiganta.
Este novo ordenamento do tabuleiro internacional coloca
dilemas, mas também oportunidades, a Portugal e, de forma ainda mais acentuada,
aos Açores, divididos entre uma orientação plenamente europeia ou uma vocação, ainda
que por vezes tímida, assumidamente atlântica.
A verdade é que a geografia não muda com as conjunturas
políticas ou ideológicas. E é precisamente essa constância que obriga a uma
afirmação mais plena da centralidade atlântica do arquipélago. Durante décadas,
a Base das Lajes foi encarada quase como inevitabilidade histórica, envolta
numa relação romantizada com os EUA, marcada pela cooperação militar e pela
nostalgia da emigração. Mas a nova-velha Doutrina Trump rompe com
sentimentalismos e as alianças passam a ser tratadas como contratos comerciais,
substantivamente negociáveis e passiveis de reversão.
Face a esta realidade, torna-se indispensável que qualquer
negociação entre Lisboa e Washington conte com participação açoriana efetiva e
qualificada e não apenas como observador turístico das reuniões da bilateral,
mas como interlocutor estratégico imprescindível. Em paralelo, o arquipélago
deve ser pensado como plataforma atlântica de duplo uso, civil e militar. Se os
EUA valorizam o controlo de rotas, a vigilância marítima e a autonomia
tecnológica, os Açores podem oferecer muito mais do que uma pista de aviação. Podem
e devem ser um laboratório vivo e ponto logístico essencial para missões de
longo alcance na investigação oceânica, aeroespacial e climática.
Por fim, e talvez com maior urgência do que nunca, impõe-se
a diversificação das parcerias internacionais. Se Washington empurra a Europa
para a periferia do xadrez global, Portugal e os Açores, pela sua proeminência
atlântica, dispõem de uma rara oportunidade para aprofundar relações com um
leque mais vasto de parceiros e redes científicas internacionais. Afirmando-se
não como triste periferia, mas como verdadeiro carrefour estratégico num
tempo e num mundo marcados pela incerteza.


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