quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Speakers' Corner 62

Os Açores e a Doutrina Trump

Em dezembro de 1823, James Monroe, quinto presidente dos Estados Unidos, apresentou ao Congresso uma declaração que ficaria conhecida como Doutrina Monroe. A fórmula “América para os americanos” traduzia a reafirmação de um isolacionismo já insinuado por George Washington e desenvolvido por Thomas Jefferson, que concebera a ideia do “hemisfério americano”.

Dois séculos depois, a nova Estratégia Nacional de Segurança, um documento de pouco mais de trinta páginas divulgado na última semana, marca o regresso dessa matriz conceptual. Os EUA deixam de se apresentar como o “polícia global” a que nos habituámos desde a Segunda Guerra Mundial para, num espírito America First, colocarem o interesse nacional acima de qualquer compromisso multilateral. A prioridade passa a ser o reforço interno, assente na autonomia industrial, tecnológica e energética, reduzindo dependências externas, sobretudo da China, e protegendo cadeias de produção consideradas críticas, das novas tecnologias ao armamento.

No plano geopolítico, a estratégia recentra-se no “Hemisfério Ocidental”, recuperando de forma explícita a lógica monroísta. As Américas e o Caribe são classificadas como regiões vitais, com foco no controlo migratório, no combate ao narcotráfico e na limitação da influência de potências externas. Trata-se de uma mundivisão de blocos e zonas de influência, muito próxima, aliás, da teoria de “espaço vital” de Putin.

Quanto à Europa, o documento critica a gestão continental da imigração e da demografia, insinuando que vários governos estão a comprometer a própria “identidade civilizacional” europeia. Afirma mesmo que, em menos de vinte anos, a Europa poderá ser irreconhecível do ponto de vista político e étnico. Concorde-se ou não com esta leitura, ela revela um afastamento estratégico da sua fronteira ocidental que a União Europeia dificilmente poderá ignorar, tanto mais que, a oriente, há uma Ásia que se agiganta.

Este novo ordenamento do tabuleiro internacional coloca dilemas, mas também oportunidades, a Portugal e, de forma ainda mais acentuada, aos Açores, divididos entre uma orientação plenamente europeia ou uma vocação, ainda que por vezes tímida, assumidamente atlântica.

A verdade é que a geografia não muda com as conjunturas políticas ou ideológicas. E é precisamente essa constância que obriga a uma afirmação mais plena da centralidade atlântica do arquipélago. Durante décadas, a Base das Lajes foi encarada quase como inevitabilidade histórica, envolta numa relação romantizada com os EUA, marcada pela cooperação militar e pela nostalgia da emigração. Mas a nova-velha Doutrina Trump rompe com sentimentalismos e as alianças passam a ser tratadas como contratos comerciais, substantivamente negociáveis e passiveis de reversão.

Face a esta realidade, torna-se indispensável que qualquer negociação entre Lisboa e Washington conte com participação açoriana efetiva e qualificada e não apenas como observador turístico das reuniões da bilateral, mas como interlocutor estratégico imprescindível. Em paralelo, o arquipélago deve ser pensado como plataforma atlântica de duplo uso, civil e militar. Se os EUA valorizam o controlo de rotas, a vigilância marítima e a autonomia tecnológica, os Açores podem oferecer muito mais do que uma pista de aviação. Podem e devem ser um laboratório vivo e ponto logístico essencial para missões de longo alcance na investigação oceânica, aeroespacial e climática.

Por fim, e talvez com maior urgência do que nunca, impõe-se a diversificação das parcerias internacionais. Se Washington empurra a Europa para a periferia do xadrez global, Portugal e os Açores, pela sua proeminência atlântica, dispõem de uma rara oportunidade para aprofundar relações com um leque mais vasto de parceiros e redes científicas internacionais. Afirmando-se não como triste periferia, mas como verdadeiro carrefour estratégico num tempo e num mundo marcados pela incerteza.

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