Mais Tolentinos, menos Ronaldos
No tempo da “outra senhora” usava-se dizer que Portugal era
o país dos três F’s — Fado, Futebol e Fátima. Na verdade, ambas as expressões
têm origem duvidosa. Há quem remonte o uso da “outra senhora” aos tempos das
convulsões liberais e ao reinado de D. Maria II; outros defendem uma raiz mais
prosaica e doméstica, associando a expressão ao universo do serviço da casa,
quando a morte de uma patroa implicava a passagem “da outra senhora”, criando
na criadagem uma espécie de antes e depois nesse reinado.
Já os três F’s, embora de origem temporal incerta, se
anterior ou posterior ao 25 de Abril, acabaram por rotular o Estado Novo e o
regime de Salazar, numa descrição certeira de um país conservador, antiquado e
nacionalista, expresso nessas três realidades do fado de Amália, o catolicismo
cego de Fátima e as glórias desportivas pátrias, com os sucessos de Eusébio ou
dos Três Violinos.
Desta feita, foi Luís Montenegro quem, no seu discurso de
fim de ano, lançou mão de uma metáfora futebolística para nos motivar a
abandonar a “mentalidade de deixar andar” e adotar uma “mentalidade
de superação”, promovendo uma “mudança de atitude colectiva”. As
palavras são dele. Usou para isso como símbolo Cristiano Ronaldo, elevado a
emblema de mérito e conquista individual.
Qual Kennedy dos pequeninos, Montenegro insta-nos a não
perguntar o que o país pode fazer por nós, mas que Cristiano Ronaldo cada um de
nós pode ser. Pouco importa agora a fragilidade da metáfora. Pouco mais há a
esperar do nosso spinumvivista de serviço que, afastando-se do real
estado do país, no descalabro das urgências, da educação ou nas perfídias da
justiça, nos vende a ideia do mérito de Cristiano Ronaldo para concluir que
afinal somos nós que não nos esforçamos o suficiente para dar mais ao país.
O que entristece não é apenas essa falsa ideia de mérito,
mas também a figura escolhida. No seu brilhante livro A Tirania do Mérito,
o filósofo americano Michael Sandel explica como a meritocracia assenta em
profundas desigualdades e como o mérito individual está marcado por
circunstâncias como a sorte, o talento e, sobretudo, o contexto social. Para
Sandel, a meritocracia falha ao ignorar esses fatores e tende a criar elites
arrogantes que desprezam os “perdedores”, o que, em última instância, prejudica
a democracia ao privilegiar o desempenho pessoal em detrimento da ideia de
coletivo e de bem comum, desembocando na desilusão com o Estado e nos múltiplos
populismos que hoje assolam o mundo.
É aqui que entra, efetivamente, a figura de Cristiano
Ronaldo. Ninguém lhe retira o talento nem o sucesso de uma carreira repleta de
conquistas individuais. Mas este é também o Ronaldo da fama excessiva e vazia,
da arrogância pessoal e, mais recentemente, do serviço à autocracia saudita e
da colagem à mitomania de Trump. A escolha de Ronaldo para representar uma
ideia de país é um tique de populismo cínico e rasteiro.
Bem sei que Montenegro nunca iria referir como exemplo Jorge
Moreira da Silva, com quem disputou a liderança do PSD em 2022 e que é hoje
titular de um dos mais relevantes cargos internacionais, liderando a Agência de
Projetos Especiais da ONU. Nem esperava que usasse o exemplo da cientista
Cecília Arraiano, recentemente nomeada para liderar a Academia Europeia de
Microbiologia. Para citar apenas dois exemplos, entre muitos, de portugueses
que assumem responsabilidades de topo a nível internacional e honram o país com
os seus sucessos individuais.
Mas se era para usar uma figura, o Primeiro-Ministro poderia
ter referido outro madeirense ilustre, hoje exemplo de sucesso e, mais
importante, de realização pessoal enquanto poeta e pensador, o Cardeal
Tolentino de Mendonça, que nos ensina que o mérito se mede pelo bem feito aos
outros e não apenas pela conquista do sucesso individual. Esse, sim, é um país
que deveríamos ambicionar, com mais Tolentinos e menos Ronaldos.


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