quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Café Royal XLV

Do alheamento

De uma chaminé alta e metálica sai vapor. Invisíveis, as bactérias flutuam pelo ar. Pessoas morrem. Numa igreja, familiares choram a morte e indivíduos cumprem, automatizada e absurdamente, a ordem de recolher os corpos em sacos de plástico. Num pavilhão, centenas de seres (supomos que) humanos ouvem embasbacados as palavras de uma máquina quase humana. Num hospital, há mais de trinta seres ainda humanos infetados por um vírus, criado por aparelhos de ar-condicionado que, em ambientes toxicamente climatizados, pretendem defender-nos de sentir a passagem das estações. É esta a crónica do nosso tempo, o tempo do alheamento, da ausência de Humanidade no Humano. Ébrios de tecnologia, perdemos a noção de nós e do outro, dos princípios básicos do que nos faz Seres Humanos, do que nos impede de ser meros animais ou autómatos. Coisas tão simples como respeito, sensibilidade, até mesmo compaixão e amor. As nossas sociedades tornaram-se tão mecânicas que a pessoa responsável por libertar uma verba financeira contamina a pessoa responsável por fazer uma vistoria, que contamina a pessoa que morre, que contamina a pessoa que ordena a interrupção de um velório, esquecendo-se, todas elas, que do outro lado das suas ações estão outras pessoas, numa corrente perpétua de obsceno alheamento…

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