Em criança todos construímos castelos, nem que sejam
imaginários. No quarto, com almofadas e cobertores, rearranjando os moveis,
construímos fortes para batalhas épicas e palácios com príncipes e princesas.
Nos jardins, com ramos e folhas e canas, erguemos cabanas, westerns sonhados de
índios e cowboys. Frágeis, mas magníficos, teatros de sonhos. Ao longo da vida,
a criação do gosto, é um pouco como esses castelos. Uma arquitectura de
memórias. Com o passar dos anos vamos construindo uma enorme Torre de Babel
interior de referências, vivências, momentos. Catalogando cada um com uma
determinada banda sonora. Como o desenhar de um mapa, traçando as diferentes
latitudes e longitudes da vida. Azimutes e esquadrias. São assim os meus
castelos, um caleidoscópio de gostos, que se desenham numa argamassa, mais ou
menos caótica de géneros, de sul para norte, este para oeste, um planisfério
sentimental de lembranças, que vão de Guns N’ Roses a Stone Roses, de Camané a
Kronos Quartet. Numa navegação sentimental através do oceano dos sons, imenso
corpo de água, pontilhado de ilhas míticas, apenas alcançáveis pela leitura das
estrelas. Há vinte anos atrás, naquele que foi um dos dois momentos mais
importantes da minha vida até hoje, passei longos meses a viajar sozinho na
Califórnia e no México. De mochila e pranchas às costas e com um Discman Sony e
um estojo de CD’s. Se fechar os olhos ainda consigo sentir o balançar ritmado
dos autocarros, nas longas travessias noturnas entre misteriosas cidades
mexicanas e vejo, nitidamente, como estrelas na noite, os cd’s dentro desse
estojo: Tarantula dos Ride; o primeiro álbum dos Stone Roses; Grace do JeffBuckley; Sketches of Spain de Miles Davis; Five Tango Sensations de AstorPiazzolla e Kronos Quartet; Chet Baker Sings. E outros, que formam as paredes dessa
construção elíptica, espécie de confluência entre as escadas de Escher e a
infinita biblioteca de Borges, que é a recordação dessa viagem, ou que é,
afinal, a solidificação mental dessa experiência em tudo o que ela teve de
concretização e consubstanciação de todo o meu percurso de vida e que fica,
para sempre, marcado por essa colecção de sons. Mas a construção do gosto é,
também, uma construção de relações humanas, de emoções, de paixões. Gestos
puros e iniciais, como a oferta materna dessa viagem, como forma de libertação
individual, ou a partilha, entre um pai e um filho, do gosto pela boa música e
do que ela representa enquanto experiência verdadeira da natureza do belo e da
sua importância basilar na vida.
sábado, 9 de junho de 2018
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