Todos os fantasmas de Natal
Ao leitor que se aproxime, um aviso – este não é um conto de
Natal. Esta não é uma elegia do tempo e da sua emoção, decorada a cores e luzes,
com canções e sorrisos. Esta não é uma melodia engalanada de vozes familiares. Esta
é uma meditação desalentada, desse outro lado mais lúgubre em que o mundo
parece que nos obriga a uma comemoração de algo que já se perdeu, e do que
significa, realmente, hoje, o espírito do Natal.
Para mim, o Natal foi sempre um território de angústias e de
tristezas. Um campo de batalha entre forças familiares opostas, cada uma
reclamando para si a primazia na trincheira das celebrações. Famílias desavindas,
entre pais e mães, cada um na sua própria casa, na sua outra intimidade, conjuntos
incomunicáveis de familiares distantes, primos ocasionais, reunidos forçadamente,
uma vez por ano, numa imposta alegria de circunstâncias. A reboque da inabalável
força motriz da convenção social. Por detrás das luzes quentes, das mesas
fartas e das indumentárias especiais, dias, meses e anos de uma insuportável e inquebrantável
distância. Décadas de solidão em Natais passados sozinho num casarão frio e desabitado,
avós e bisavós já falecidos, fotografias antigas e desvanecidas, como
companhias silenciosas. Irmãos distantes reclamando para si a atenção obrigatória
do momento. Cada um chamando para si a centralidade do dia, da hora, da inescapável
data. Afetos trocados em SMS e WhatsApp, como eletrónicos cartões de natais
descartáveis. Ainda hoje, pai divorciado com duas filhas, o Natal é essa permanente
batalha de egos e vinganças, disputada em euros empacotados de papéis brilhantes
e laços reluzentes de permanentes alienações. Um braço de ferro de emails e
acusações na altercação frívola da vã alegria das crianças. Adolescentes alienadas
na alegria importada dos Tik-Toks nos ecrãs fluorescentes dos telemóveis. Relações
sismicamente abaladas pelo ciúme das celebrações.
A cada ano que passa receio mais o Natal. O mundo todo
obrigando-nos a ser uma coisa da qual não nos sentimos capazes, num global campo
de prisioneiros de emoções, rodeado do inclemente arame farpado das falsas
alegrias, regado a litros de álcool de diferentes tipos e kilos de peru, recheio,
bacalhau e grão, mais as rabanadas e os doces de uma comiseração e arrependimento
pós natalícios que faz as glórias dos ginásios e boxes de crossfit destes
tempos de jovial alienação. Abomino o Natal em toda a sua omnipresente e insuportável
condescendência e cínica caridade. Como se por força exclusivamente da data
fossemos forçados a uma imposta benevolência. Um decreto legislativo de bondade
universal e gástrica, onde todos os excessos são permitidos para fazer esquecer
a brutal realização de que, na verdade, não gostamos assim tanto uns dos
outros. Porque se assim fosse convivíamos mais vezes, trocávamos presentes e mensagens
com mais frequência, lembrávamo-nos uns dos outros mais dias por ano, sem ser
preciso o Facebook a recordar-nos das efemérides ou dos aniversários, numa vida
que se faz mais de números no calendário do que de sentimentos no coração.
Na verdade a vida, como o mar, corre em ciclos. Estações que
se ultrapassam e sucedem, repetindo-se ritmicamente ao longo dos anos em
agitações e sossegos, como as ondas que vêm morrer na praia, umas vezes calmas
e suaves, quase doces no seu salgado marulhar, outras vezes gigantescas e omnipotentes
imbuídas da energia impiedosa das tempestades. Os Homens, sujeitos impotentes das
forças da natureza sempre se regiram pelos seus ciclos, os dias e as luas, a
dança das marés, as estações, os solstícios, as órbitas, as eras e os grandes desígnios
da esfera ascendente da criação do Universo. Grãos de areia da grande imensidão
do cosmos, somos uma centelha apenas na grande engrenagem da ordem natural das
coisas. Os ritmos e os padrões da natureza delimitaram sempre a vida dos homens
e antes de haver Cristo havia solstícios e mesmo depois de Cristo nem sempre o Natal
foi parte da Sua celebração.
Ao longo de milhares de anos, desde as primeiras culturas do
neolítico, o solstício de Inverno marcou sempre um momento determinante na vida
das comunidades humanas. O dia mais curto do ano, marcando o renascimento do
sol e o meio do Inverno, simbolizando a conquista da luz sobre as trevas e o
renascimento da vida. Na Grécia antiga o grande festival em honra do deus Poseidon,
o deus do mar, era celebrado um pouco por todo o território no mês de Dezembro
coincidindo com o solstício. Em Elêusis, o festival de Haloa, em honra de Deméter,
deusa da agricultura e, principalmente, Dionisio, deus do vinho, era celebrado também
no solstício numa quase orgíaca excitação coletiva de embriaguez e sexualidade.
Dionisio, como Cristo, também morreu e ressuscitou. Os Romanos celebravam a
Saturnália, uma semana inteira de festividades em honra de Saturno, deus do
tempo, da renovação e da abundância. Coincidentemente, ou talvez não, o dia do solstício
de Inverno, no calendário romano, era o dia 25 de Dezembro, a seguir à Saturnália,
marcando o primeiro dia do “novo sol”. Nos primeiros séculos da Igreja Cristã o
nascimento de Jesus não era uma data significativa do rito, sendo só no século
IX que ganharia uma liturgia especifica, mas ainda não com a importância da Páscoa.
O martírio, sacrifício e sofrimento, foi sempre, para a igreja, a essência fundamental
do cristianismo.
Hoje, o Natal, mais do que uma celebração cristã ou um indefinido
rito pagão, é uma festividade popular impregnada de laivos consumistas, como
uma gigantesca Black Friday de celebração do triunfo do capitalismo sobre a nossa
civilização, esvaziado de quase todo o seu pendor cristão ou religioso ou até
mesmo emocional. Árvores de Natal ricamente decoradas, mesas gargantuanas numa
abundância faustosa e excessiva, trocas de prendas entre familiares, mergulhando
as crianças em brinquedos que ficaram esquecidos em estantes e caixotes de
tantos e tantos natais passados, mesmo o Pai Natal, esse velho, branco, heterossexual
que a religião woke ainda não conseguiu cancelar, são tudo manifestações mais
de um ritual secular do que religioso, mais de gula do que de fé, de faturação
financeira do que de amor.
Naquele que é o mais conhecido conto de Natal da literatura
ocidental, Dickens, apresenta-nos precisamente, em Ebenezer Scrooge, essa
dicotomia entre a avareza capitalista e a abnegação e fraternidade cristã, como
que querendo avisar-nos dos males provenientes da dissociação entre os ciclos e
as leis da natureza e uma vida onde esses ciclos não são mais do que pretextos
para a celebração do culto do consumismo e do individualismo moderno. O Natal
de Scrooge, e os seus fantasmas, é a alegoria da nossa incapacidade de celebrar
o outro em vez da nossa própria autossatisfação. Os ciclos da natureza deram
lugar aos ciclos da moda e da fama, num permanente scroll de ilusão.
Em Wiltshire, no sudoeste de Inglaterra, ergue-se há mais de cinco mil anos o monumento megalítico de Stonehenge. As imensas pedras deste lugar arqueológico estão cuidadosamente alinhadas com o pôr-do-sol do solstício de Inverno num raro espetáculo de luz que atrai centenas de peregrinos e curiosos todos os anos. Os arqueólogos têm debatido o significado do lugar, desde cemitério cerimonial, templo religioso ou observatório astronómico. É possível que o grande e velho monumento seja, de facto, um pouco de tudo isso, atravessando milénios como lugar de múltiplas celebrações, confluindo nessa especial exaltação da luz do sol que se põe indicando-nos o caminho da renovação. Quando outras civilizações celebravam ciclos de nascimento, crescimento e morte, seguindo o sol como estrela orientadora. Nós seguimos a vagamente cínica celebração das vaidades individuais e da ditadura do efémero, em sucessivos e repetidos desencontros, debaixo do brilho intermitente das luzinhas dos chineses que, de ano para ano, mais ou menos desastradamente, penduramos nos ramos sintéticos de velhas e entristecidas árvores de Natal, num tempo em que a família, afinal, é um animal em vias de extinção.
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