O Fado do Embuçado
Portugal é prenhe de messianismo. Desde a sua incepção que o
país se constrói na ideia de uma graça divina que longe se estenderá pela sua
história. Tão longe que ainda hoje o povo se ajoelha na prece do seu “embuçado”.
A lista é interminável e tem em D. Sebastião, o Encoberto, a expressão máxima dessa
ideia messiânica que atravessa a nossa história, seguindo pelos séculos, em
saltos políticos e filosóficos, contaminando o raciocínio das elites e o
espírito do povo. E mesmo pela república dentro, até à democracia, as figuras
messiânicas foram sempre pródigas na convulsiva e angustiada política
portuguesa, numa linhagem que, de Afonso Henriques a Salazar, marca a neblina
nacional pela ânsia de um Quinto Império. Salazar, e o seu principal propagandista,
António Ferro, foram, aliás, os mais instrumentais elementos na construção
deste Portugal contemporâneo, submergido no caldeirão denso do saudosismo, numa
espécie de revisionismo histórico nacionalista e antimarxista, que continua
hoje tão em voga, como se viu nessa equivoca e extemporânea sessão solene do 25
de Novembro, a que assistimos anteontem.
Vem este longo intróito a propósito das notícias veiculadas
esta semana sobre a presuntiva candidatura presidencial de S. Exa. o Chefe de
Estado Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo, ou, como ficou conhecido
aquando da sua projeção para a fama, o Capitão Iglo da ditadura pandémica. Despenseiro
logístico da panaceia vacinal feito novo messias da grandeza pátria, emergindo
das águas do anonimato militar para os holofotes do circo político-mediático na
velocidade de duas inoculações. Mas, o que me interessa realçar nesta putativa
candidatura, não é a suposta incógnita bruma ideológica em que vem envolvida a
personagem (para mim o autoritarismo do protocandidato é claro…), mas é
precisamente a dinâmica das reações políticas à intenção do Sr. Almirante, imbuídas
na sua quase totalidade por um revisionismo descarado e, diria eu, insultuoso.
É que Gouveia e Melo é uma invenção do Costismo, uma ideologia
política impregnada pelo maquiavelismo clássico de que os fins justificam os
meios. No auge da pandemia, o Costismo não se coibiu de fazer mão dos mais básicos
instintos e armas do populismo, nomeadamente a instrumentalização da autoridade
militar, para imposição de uma ordem arbitrária, eminentemente inconstitucional
e ostensivamente ditatorial, alicerçada no medo, em que um comandante de submarinos,
de porte arrogante e traje de combate, qual Eanes em cima do carro, funcionou como
instrumento exemplar da estratégia comunicacional de um governo permanentemente
em campanha eleitoral. Ainda hoje, ninguém me convence que não foi um qualquer
Luís Paixão Martins que se lembrou de colocar à frente do COPCON do Infarmed um
militar garboso e embarbado. É por isso que é particularmente cómico, para não
dizer patético, assistir hoje aos porta-vozes do regime zurzirem no Almirante
com todos os clichés do arrivismo eleitoral: o militar oportunista; o populista antissistema; o fascista útil e
outras lamentações do género quando foram eles próprios quem, não só inventou o
“monstro” de que agora se acobardam, como criou o caldo de cultura que permite
que hoje, 50 anos depois das promessas de Abril, o descrédito das pessoas perante
um estado falhado seja tal, que um novo embuçado conquiste mais de 20% de
aprovação do eleitorado.
Nos meus tempos de petiz, num Portugal mais simples, João Ferreira
Rosa, um perigoso reacionário, cantava num lirismo particular o “Fado do
Embuçado”, que todos entendiam como um hino a D. Sebastião. O poema, escrito por
Gabriel Oliveira, conhecido, ironicamente, como Gabriel Marujo, e musicado pelo
guitarrista José Marques Piscalarete, era, afinal, uma homenagem ao Rei D.
Carlos que, consta, gostava de fados. Pode ser que o Almirante faça deste fado o
seu fado, para grande mal do nosso fado coletivo…
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