quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Speakers' Corner 55

Uma Capital sem ambição

A escassos três meses do seu início foi finalmente assinado o protocolo financeiro de Ponta Delgada Capital da Cultura 2026.

Indiferentes ao ridículo da sua própria situação, a assinatura de um compromisso financeiro para um evento que, a esta altura, já deveria estar praticamente todo programado, calendarizado e, em alguns aspetos, plenamente executado, a sessão solene contou com a presença de dois ministros, secretários de estado, presidentes de governo, secretários regionais e autarcas. Só faltou convidarem os proponentes originais da candidatura, uma pequena deselegância que, para alguns, não passou despercebida.

De facto, este arranque aos solavancos da Capital da Cultura tem sido pródigo em erros, omissões e falhas de comunicação, revelando uma ausência de projeto a todos os níveis preocupante. E, infelizmente, os sinais deixados nestes últimos dias não auguram, para já, nada de bom.

No âmbito da sessão de assinatura do protocolo, o comissariado da Capital da Cultura promoveu uma conferência sob o tema “Cultura, Educação e Território no Lugar do Amanhã”. Ora, o aspeto mais saliente desta iniciativa foi a inconspícua ausência de protagonistas locais. Os painéis foram exclusivamente compostos por especialistas “de fora”. E se a educação, na sua vertente de formação de públicos e de hábitos de consumo cultural, e o território, numa região arquipelágica como esta, se apresentam como eixos fundamentais de um projeto desta natureza, não se compreende como podem ser abordados sem a participação dos agentes locais. Por mais meritórias que sejam as experiências e perspetivas apresentadas, estas revelam-se inevitavelmente desfasadas de uma realidade dispersa e insular como é a nossa.

A questão que se impõe é que território é exatamente este que a Capital da Cultura se propõe abordar? Está esta iniciativa confinada ao eixo Mosteiros–Rosto de Cão? Ou a ilha, as ilhas e a projeção da região para o exterior fazem também parte do seu âmbito de ação?

Ao apartar-se da sua génese, a de uma capital cultural ampla, enraizada nos seus nove bairros, esta Capital da Cultura recusa aquilo que deveria ser uma das suas primeiras preocupações, a de uma Ponta Delgada central na vida do próprio arquipélago, não como imposição, mas como responsabilidade. E essa componente arquipelágica, que deveria estar no cerne do projeto, parece, ao que se sabe e até ver, posta de parte. Não se percebendo porquê.

Por outro lado, duas notas deixadas nestes primeiros momentos públicos causam alguma estupefação ao espectador mais atento.

Desde logo, o “monumento à vaca”. Uma parceria com o Grupo Bel para a construção de uma escultura de homenagem aos produtores de leite açorianos. Trata-se de uma subjugação clara ao marketing privado de uma multinacional dos lacticínios e de uma redução óbvia da imagem dos Açores a um dos seus mínimos denominadores comuns, hoje até dos mais polémicos, pelos impactos económicos e ambientais que acarreta.

Se juntarmos a isto as declarações da comissária, quando questionada sobre a programação já prevista, resumida a um retomar de tradições como os Assaltos de Carnaval e o Menino Mija, temos uma Capital da Cultura prisioneira de uma certa ideia nostálgica e infantil de uma Ponta Delgada dos anos oitenta do século passado, feita de clichés folclóricos e memórias pessoais.

A ideia de uma Capital da Cultura era um sonho bonito, que gerou enorme expectativa e vontade entre os agentes locais, na esperança de um evento capaz de projetar a criação artística açoriana para o mundo e trazer o mundo aos Açores, com rasgo, vanguarda e vontade de rutura. Uma capital que fosse de arte, pensamento e projeção.

Pelo que é público até agora, temos apenas uma velha Ponta Delgada, presa nos seus próprios fantasmas e tradições folclóricas, sem mundo e sem imaginação. Sinceramente, o que espero é que esta Capital da Cultura possa vir a ser mais do que apenas mais uma oportunidade perdida.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Speakers' Corner 54

As vencedoras e os vencidos

Os cenários pós-eleitorais são sempre férteis em elações, conjeturas, explicações e narrativas. Os americanos até têm um nome próprio para os profissionais que se dedicam a esta arte específica da comunicação política: os chamados spin doctors. Que é como quem diz, especialistas em dar a volta aos resultados.

Estas últimas eleições autárquicas, em particular aqui nos Açores, foram ricas em exercícios de contorcionismo verbal, sobretudo por parte dos líderes dos grandes partidos e, de forma bastante contundente, do candidato do PSD à Câmara de Ponta Delgada, todos prontos a clamar para si vitórias, mesmo que fossem vitórias de Pirro, como foi o caso.

Cada um, à sua maneira, cantou vitória, reclamando para si e para os seus os louros de mais votos, mais mandatos, uma percentagem que sobe aqui, uma freguesia ganha acolá. É o habitual nestas ocasiões, mas nem sempre é o mais justo, muito menos o mais verdadeiro.

No meu entender, o facto mais relevante destas eleições é, sem dúvida (ainda mais do que o alarme falso do CHEGA!...), a extraordinária vitória das mulheres. Nunca os Açores tiveram tantas mulheres a liderar autarquias, numa demonstração clara de uma evolução sísmica na política regional. Fátima Amorim, Ana Brum, Catarina Manito, Elisabete Nóia, Catarina Cabeceiras, Vânia Ferreira, Bárbara Chaves e Graça Melo, esta última com uma vitória tão retumbante quanto surpreendente. E, se juntarmos a isto as prestações inesperadas de Sónia Nicolau e de Lurdes Alfinete, uma tirando a maioria a Pedro Nascimento Cabral na maior autarquia dos Açores, e a outra ficando a uns escassos trezentos e poucos votos de virar a Ribeira Grande, temos uma demonstração vibrante de que foram, sem sombra de dúvida, as mulheres as grandes vencedoras desta noite eleitoral.

No campo dos derrotados, e ao contrário do que quiseram fazer parecer nos seus discursos de circunstância, José Manuel Bolieiro, Francisco César, Paulo Estêvão, José Pacheco e Pedro Nascimento Cabral saem da noite de domingo com mais razões de preocupação do que de regozijo. Por mais que o líder do PSD e do Governo queira cantar vitória, não consegue uma vitória robusta que lhe dê lastro para sobreviver às tempestades que aí vêm, nomeadamente as da SATA, da bancarrota e de um orçamento regional com mais austeridade do que o da Troika. Paulo Estêvão sofre uma derrota envergonhante no seu pequeno feudo particular, agravada pelas suspeitas que recaem sobre o seu candidato. José Pacheco ficou longe do que pretendia, ou sequer do que se esperava e, apesar de garantir a eleição para vereador em Ponta Delgada, não consegue, nem nas freguesias, as vitórias que lhe vaticinavam os observadores.

Por último, Francisco César vê o partido resvalar ainda mais no seu processo descendente que, apesar de ter mais votos do que o PSD, se traduziu na perda de câmaras, freguesias e mandatos, com a vergonha maior de ficar em terceiro lugar, atrás de Sónia Nicolau, em Ponta Delgada. Onde, aliás, seria importante que os dirigentes da secção concelhia do partido tirassem as devidas ilações da péssima condução de todo este processo.

Em Ponta Delgada, Pedro Nascimento Cabral perde dois vereadores, fica empatado com Sónia Nicolau e sofre uma queda impressionante de quase quatro mil votos. Fica agora dependente de difíceis negociações para conseguir aprovar o seu programa, tarefa árdua para alguém que já demonstrou não ter feitio para grandes diálogos.

Espero sinceramente que, neste cenário difícil que se avizinha, tanto na Câmara de Ponta Delgada como na Região, não venha a ser o PS de Francisco César a dar a mão aos desmandos de um PSD que, em conjunto, pode reivindicar os dúbios títulos de pior presidente de câmara e pior governo regional de sempre. Nem mesmo com a desculpa esfarrapada da “estabilidade”, porque a estabilidade é o refúgio dos fracos, e os Açores pedem lideranças fortes para navegar tempos de tempestades…

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Speakers' Corner 53

A celebração de uma identidade

Por um curioso alinhamento de datas, o país e a região vivem por estes anos uma inusitada sequência de efemérides e celebrações. Dos 50 anos do 25 de Abril, aos 600 anos do descobrimento dos Açores, passando pelos 50 anos da Autonomia Regional, e mesmo a coincidência de Ponta Delgada Capital da Cultura que acontece no próximo ano, entre 2024 e 2027, o país e a região vivem um momento ímpar de celebração da consciência coletiva que nos devia mobilizar a todos como sociedade.

Infelizmente, hoje a ideia de celebração identitária tornou-se numa espécie de anátema social. A minha geração, em particular, foi educada, em grande medida, para desconfiar da ideia de pátria. O Estado Novo apropriou-se de tal forma do nacionalismo que, depois da Revolução, o país pareceu precisar de se purgar daquela sombra do patriotismo que pairava sobre a nação como um xaile negro e opressivo. O orgulho nacional, a simples evocação da glória pátria, tornou-se suspeito, uma relíquia ideológica de um tempo de hinos, fardas, União Nacional e censura. O amor à pátria passou a soar a fascismo e a própria palavra “Portugal” foi, por muito tempo, pronunciada com embaraço, quase com constrangimento, numa surdina envergonhada só levemente aceite nas vitórias da Seleção Nacional e nos golos do Ronaldo.

A história dos últimos cinquenta anos é também a história dessa tensão entre um Portugal ensimesmado e fechado sobre si mesmo e outro, cosmopolita, aberto ao mundo e à Europa. A democracia procurou libertar-se do velho país salazarento, rural e beato, que erguia estátuas ao sacrifício e à obediência, louvando a pobreza e a grandeza do Império, trazendo para o centro da vida coletiva a ideia de um país global. Foi a Europália de 1991, a Lisboa Capital da Cultura em 1994, a Expo 98, o Euro 2004, toda uma galeria de grandes eventos internacionais que pretendiam projetar o país para o exterior, modernizando-o. Mas, ao fazê-lo, o país acabou também por perder algo de essencial e de interior, o sentido de comunidade, o sentimento de pertença, a capacidade de celebrar em conjunto os feitos e a história sem medo de parecer antiquado ou, pior ainda, conservador.

As grandes datas nacionais foram-se tornando quase incómodas. O 5 de Outubro, como vimos nestes dias, tornou-se tóxico. O 10 de Junho transformou-se num ritual sem alma, deslocado das populações, onde nem já Camões se destaca como poeta agregador das massas. Os desfiles do 25 de Abril dividem mais do que unem, com a descida da Avenida seccionada em trupes de cada identidade sectária, com os liberais a fecharem o cortejo ao estilo carro-vassoura das diferenças políticas. As comemorações oficiais tendem a ser tratadas como obrigações protocolares, com tanto de bocejo como de pompa, ou, então, meras oportunidades para ajustes de contas ideológicas com o passado. A esquerda teme parecer nacionalista; a direita fá-lo muitas vezes de forma caricatural e nostálgica, incapaz de se renovar. O resultado é que o país perdeu a capacidade de se rever ao espelho e de se aceitar em si mesmo, com as suas glórias e os seus erros, inteiro, em vez de compartimentado e envergonhado, numa paralisação autodesvalorizante que o faz fugir de si próprio.

Talvez seja por isso que as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril, que poderiam e deveriam ter sido uma afirmação serena da nossa maturidade democrática, acabaram reduzidas a um eco dos traumas do passado. Entre o revisionismo e a saudade, entre a retórica da “liberdade conquistada” e o ressentimento do “25 de Novembro”, o país parece reviver a infância das suas divisões, incapaz de transformar a memória em projeto. Incapaz de sarar as feridas passadas, unindo-se num ideal comum de liberdade e democracia. Em vez disso, caímos no fosso do revanchismo revisionista, agitando ainda as velhas bandeiras da revolução contra a reação. Como se ser de Abril não fosse, afinal, ser de Portugal e vice-versa.

Até porque celebrar o passado não tem de ser um processo regressivo, feito de traumas e restituições. Pelo contrário. Celebrar é um gesto profundamente afirmativo. É reconhecer que há uma história comum, um percurso que nos precede e uma continuidade que nos sustenta. Não se trata de glorificar o passado, mas de o compreender como parte viva de quem somos e que nos transporta, com segurança, para o futuro. Celebrar é afirmar uma identidade que não precisa de ser nacionalista para ser cultural, cívica ou simplesmente nossa, individual e humana.

Há um equívoco de fundo na ideia de que o passado é um túmulo amaldiçoado de que é preciso fugir ou esquecer. O nacionalismo é uma ideologia; o sentimento de pertença, não. Um povo sem laços é apenas uma soma de indivíduos. E uma comunidade que não celebra as suas datas é uma comunidade que esquece o seu próprio caminho. A memória coletiva precisa de rituais, de símbolos e de encontros. São esses momentos, por mais cerimoniosos ou até artificiais que pareçam, que alimentam a consciência de que pertencemos a algo maior do que nós próprios.

Em 2027, os Açores celebrarão 600 anos do seu descobrimento. É uma data que poderia (e deveria) ser mais do que uma efeméride histórica: é uma oportunidade para pensar o arquipélago como um projeto comum. Porque, na verdade, a ideia de arquipélago nunca esteve totalmente consolidada. Ainda hoje, como não me canso de escrever, persiste uma visão fragmentada, quase insular, da própria autonomia, uma soma de ilhas, mais do que uma consciência coletiva de Açores.

Celebrar os 600 anos não seria apenas recordar a chegada dos primeiros navegadores; seria pensar o que significa hoje viver num território atlântico e europeu. Seria um exercício de imaginação cívica, uma oportunidade de revisitar a história para projetar o futuro. Um futuro que, para os Açores, tem tudo a ganhar em reforçar a sua ideia de conjunto e de verdadeira comunidade arquipelágica na sua circunstância de ponte entre dois mundos.

Essas celebrações poderiam ser um momento de reencontro: entre a história e o presente, entre o local e o universal. Através da cultura, da arte, da ciência, da reflexão crítica e não apenas de discursos ou cerimónias protocolares, com mais ou menos concertos e sopas do Espírito Santo, poder-se-ia afirmar uma nova forma de pertença. Uma pertença aberta, moderna, consciente da sua complexidade e das suas tensões e que abarcasse todas as ilhas desde o Corvo a Santa Maria numa verdadeira Açorianidade.

Os Açores são, afinal, um microcosmo perfeito do dilema português: entre o orgulho de existir e o receio de o declarar. Tal como o país continental, o arquipélago vive entre a vontade de se afirmar e o medo de parecer retrógrado; entre a necessidade de celebrar e o pudor de o fazer. Mas não há nada de reacionário em querer celebrar o que somos. Reacionário é desistir de nos pensarmos, é omitir essa permanente tensão de existir.

Talvez o maior legado dos cinquenta anos do 25 de Abril pudesse ser precisamente este: libertar o amor à pátria da sombra do Estado Novo e devolvê-lo à cidadania democrática. Reconciliar-nos com a ideia de que um país pode orgulhar-se de si sem se fechar, que uma ilha pode celebrar a sua história sem se isolar, que um povo pode ter símbolos sem ser escravo deles.

No próximo ano celebraremos também os 50 anos da Autonomia. Ao que se sabe, pouco ou nada está ainda pensado para esse momento fundacional da nossa contemporaneidade insular. Talvez, nos gabinetes bafientos, algum técnico superior esteja incumbido de organizar o protocolo da celebração, dos discursos, das precedências e das comendas. A nós chega-nos pouco ou quase nada do que deveria ser a celebração do nosso aniversário coletivo enquanto entidade arquipelágica, autonómica, insular, europeia e atlântica. Talvez ainda vamos a tempo.

Talvez ainda vamos também a tempo de celebrar convenientemente esse estatuto de Capital da Cultura, mesmo que os financiamentos se percam nas gavetas das insolvências governativas, que os protagonismos políticos e artísticos tentem cooptar esses gestos simbólicos, retirando-lhes a essência popular e criativa que um momento como este deveria ter. Tal como, aliás, estava previsto na sua génese: um evento agregador da pluralidade insular, fazendo de Ponta Delgada não a capital, no sentido mais retrógrado do termo, mas o epicentro, motor e centralizador da multiplicidade e diversidade insular. Uma cidade feita desses nove bairros, na feliz formulação do Nuno Costa Santos, que se revisitam e se dão a conhecer em conjunto.

Celebrar, celebrarmo-nos, não tem de ser um frete ou um embaraço. Celebrarmo-nos, a nós, como povo, arquipélago e identidade, é antes uma afirmação viva dessa Açorianidade literária que Nemésio cunhou fará agora cem anos e que hoje não vale mais do que um envergonhado prémio literário de dois mil e quinhentos euros.

Perdemo-nos tanto na espuma do presente que nos esquecemos de celebrar o passado e de ambicionar o futuro.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Speakers' Corner 52

O Grand Tour micaelense e o futuro do turismo regional

Sábado passado assinalou-se o Dia Mundial do Turismo, este ano dedicado ao tema “Turismo e Transformação Sustentável”, salientando o poder transformador desta indústria como agente positivo de mudança, tanto nos territórios como nas comunidades.

A ideia de turismo, alicerçada no conceito romântico do Grand Tour, é relativamente recente. Os seus primórdios recuam aos conceitos de lazer e de tempo livre, uma conquista civilizacional do final do século XVIII, generalizada na burguesia do século XIX. O lazer nasce da Revolução Industrial e é precisamente a máquina a vapor que impulsionará a deslocação das elites burguesas pelos territórios europeus e além-fronteiras.

Contrariamente ao que se possa pensar, os Açores não ficaram à margem deste movimento. A sua centralidade geográfica, as paisagens, as gentes, os produtos e, no caso específico de São Miguel, as termas de águas férreas, cedo despertaram o interesse de viajantes de ambos os lados do Atlântico.

Não é necessário ser especialista na matéria, nem recorrer às obras de autores como Ricardo Madruga da Costa ou Fátima Sequeira Dias, ainda que essenciais, para compreender a antiguidade e o potencial turístico das ilhas. Basta folhear o magnífico tomo de Maria das Mercês Pacheco, Viajantes nos Açores: o olhar estrangeiro sobre as ilhas desde o século XVI, da editora Artes e Letras, para sentir a antiguidade desse fascínio insular feito de vulcões, navegações e do sortilégio das suas gentes, que fazem do turismo nos Açores uma história já com bastante mais de 100 anos.

Em 1899, São Miguel foi pioneira no país com a criação da Sociedade Propagadora de Notícias Michaelenses. A instituição dedicava-se à promoção externa da ilha através de boletins, guias e informação turística, contando com figuras como Ernesto do Canto e Eugénio do Canto e Castro como seus principais dinamizadores.

No ano de 1924 ganhou notoriedade a Viagem dos Intelectuais, promovida por José Bruno Carreiro através do Correio dos Açores, que trouxe ao arquipélago notáveis da cultura e do jornalismo nacional, que puderam conhecer in loco o seu imenso potencial turístico.

Em julho de 1933 surge a Socidedade Terra Nostra, fundada por Augusto Arruda, Agnelo Casimiro e Francisco Bicudo, e enriquecida pelo talento artístico do Eng. Manuel António de Vasconcelos. Este audacioso projeto viria a consolidar o Vale das Furnas como epicentro turístico da ilha e que, um par de anos depois, Vasco Bensaúde transformaria no grupo que até hoje enverga o estandarte da excelência do destino Açores. Uma empreitada que, pela sua ousadia, muito merecia que se lhe fizesse a verdadeira história até como legado para as gerações futuras.

Poucos anos mais tarde, alguns destes protagonistas estariam também na fundação da SATA, companhia criada com a visão estratégica de ligar os Açores ao mundo e vice-versa. Hoje, infelizmente, a empresa atravessa uma fase de agonia precipitada, com consequências imprevisíveis para a sustentabilidade turística do destino.

A partir dos anos 1970 e 1980, com a chegada dos aviões a jato e profundas mudanças políticas e sociais, o turismo açoriano entrou numa espécie de hiato evolutivo. Ao qual não foi alheio o conservadorismo da época, cujo “mota-amarelismo” via nesta indústria progressista e inclusiva uma ameaça à estabilidade de um certo atavismo e sectarismo insular avesso a muitas modernidades.

Já no nosso tempo, o contributo de figuras como Albano Cymbron e os seus “suecos” e passeios pedestres, Serge Viallelle e a observação de cetáceos, Duarte Ponte e Luís Bensaúde com os seus hotéis, para referir apenas alguns no meio de muitos, aliados à liberalização do espaço aéreo, fizeram explodir a indústria turística na região, tornando-a incontornável no desenvolvimento do arquipélago.

O próprio Governo Regional reconhece isso mesmo: em comunicado pelo Dia Mundial do Turismo, apontou que o setor já contribui para mais de 1.000 milhões de euros de riqueza anual, representando cerca de 20% do VAB regional, 17% do PIB e 17% do emprego. Números que atestam a centralidade incontornável do turismo no futuro desta região.

Contudo, é precisamente essa relevância que nos deve levar a uma reflexão séria e descomplexada sobre o presente e o futuro do turismo nos Açores. Para isso é essencial fugir tanto das propagandas laudatórias como dos pessimismos retrógrados que veem no turismo uma doença perturbadora da placidez ilhoa.

Apesar do crescimento constante nos indicadores, há sinais cada vez mais preocupantes no retrato mais abrangente do sector, que nos deviam inquietar e ponderar. Desde logo, a ausência de linhas orientadoras claras e de planeamento estratégico fragiliza o crescimento sustentado de uma atividade essencial para o nosso desenvolvimento. Falta uma visão definida sobre que destino queremos ser e que metas queremos atingir, o que deixa o setor, já de si sensível a choques externos, ainda mais vulnerável às flutuações do mercado e, em especial, dos humores das companhias aéreas. Planos sucessivamente suspensos e estratégias elegantemente desenhadas, mas nunca efetivamente aplicadas, potenciam uma espécie de caos organizado que gera deriva em vez de rumo.

Outro problema premente é a falta de uma identidade. Tardamos em compreendermo-nos como um agregado de diferentes partes e em promover-nos como tal, potenciando diferenças, em lugar de, bairrista e artificialmente, promover gateways que na verdade se canibalizam umas às outras. Por outro lado, a hegemonia de uma imagem de “destino de natureza pura” negligencia dimensões como a história, a gastronomia, o património e as especificidades culturais distintas de cada ilha, elementos fundamentais para afirmar os Açores, no seu todo, como destino europeu e atlântico de referência, em particular em mercados como o norte-americano, tão ávido de história como de natureza.

A sazonalidade constitui igualmente um desafio central. No verão IATA (final de março a final de outubro), a região dispõe de cerca de 1,16 milhões de lugares em aviões, de acordo com os dados que é possível obter, número que desce drasticamente no inverno para apenas 350 mil. Este perigosíssimo desequilíbrio estrutural põe em causa a rentabilidade do setor e trava o seu crescimento pondo em risco empresas, postos de trabalho e investimentos.

Acresce o incremento exponencial da oferta e a saturação de alojamento: nos últimos dez anos, a capacidade aumentou mais de 600%, enquanto os hóspedes cresceram apenas 130% e as dormidas 200%. Este desfasamento revela um setor desequilibrado e altamente vulnerável, apesar do discurso da “sustentabilidade” que tanto agrada aos atores políticos.

Por último temos um claro desfasamento entre a oferta de infraestruturas e a procura turística, naquilo que é uma clara desqualificação do destino causando pressão sobre o território, a qualidade de vida dos locais e a própria experiência dos visitantes. Um destino como o nosso, não pode conviver com o fecho do Ilhéu a banhos ou a poluição na praia do Monte Verde.

Combater a sazonalidade, criar metas equilibradas de crescimento e alinhar oferta e procura são hoje os principais desafios para este sector. Uma política focada apenas no curto prazo, nos investimentos imediatos e estatísticas homólogas, conduzirá inevitavelmente à massificação e descaracterização de um destino que sempre se construiu mais pela ambição dos que cá vivem do que pela cobiça dos que nos visitam.

Já para nem falar no velho e gasto tema da promoção, que não se faz sozinha, nem pode nunca deixar de se fazer, sempre, continuada e apaixonadamente.

No distante ano de 1933, o Dr. Agnelo Casimiro escrevia na revista Insula:

Turismo! Palavra mágica, que de há tempos vem eletrisando as classes micaelenses num justificado anseio de progresso regional. Podem e devem (…) aspirar com razão e sem receio a esta poderosa fonte de desenvolvimento local aquelas terras que, como a formosa ilha de Sam Miguel, encerram tantas maravilhas panorâmicas e tamanha riqueza hidrológica, gozando ainda de uma situação geográfica privilegiada, a meio caminho no imenso Atlântico, entre o Novo e Velho Mundo. (…) O que nos falta, pois? Apenas isto: preparação e propaganda. Todos o sabem também.”

Quase cem anos volvidos, este anseio em forma de aviso desse ilustre vulto do séc. XX micaelense mantém-se inusitadamente vivo e até mesmo com uma estranha e perturbadora atualidade, quando tantas e tantas vezes seguimos falhando na preparação e na qualificação do destino e negligenciando a importância da sua promoção cuidada e permanente.

Ao invés, seguimos ao sabor do vento. Infelizmente, mais da tempestade do que da bonança.

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Speakers' Corner 51

Finançocracia Inc.

Na última semana, os meios de comunicação social efervesceram com o cancelamento do programa Jimmy Kimmel Live!, da televisão ABC, apresentado pelo comediante norte-americano.

Os comentários giraram em torno da censura institucional, da ingerência política e das crises da democracia e da liberdade de expressão. Alimentando a pergunta: que fazer para salvar a democracia?

Os principais estudos recentes sobre esta temática abordam desde reformas institucionais e defesa da verdade até ações individuais de cidadania responsável. Entre os destaques dos últimos anos, há livros, relatórios e manuais que propõem saídas concretas perante a crescente ameaça de autoritarismo e erosão democrática. Anne Applebaum, uma das mais vocais defensoras do Ocidente democrático, examina, nos seus livros Autocracy, Inc. e Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism, como as autocracias globais cooperam para minar democracias, defendendo a necessidade de estratégias conjuntas para proteção das instituições democráticas e mostrando como, na ascensão do autoritarismo contemporâneo, muitos antigos defensores da democracia foram seduzidos por regimes antidemocráticos.

A literatura recente concorda que salvar a democracia não se restringe a ajustes institucionais: requer cultura democrática, práticas quotidianas de tolerância, persuasão e renovação dos laços sociais. Os trabalhos académicos sublinham ainda a importância das alianças transnacionais e do combate estratégico à desinformação digital. Mas talvez o compromisso maior seja o de reconquistar a confiança dos cidadãos nos políticos, nas instituições e na própria democracia como regime de tolerância, liberdade e justiça para todos.

Mais do que temer os extremistas ou populistas de ambos os lados, talvez a melhor forma de reconquistar essa confiança seja através da transparência e, sobretudo, da justiça social. Um dos problemas mais graves com que vivemos é a forma como, desde 2008, com a crise financeira global, os sistemas políticos se subjugaram ao capitalismo selvagem das grandes instituições financeiras. Salvámos a Banca, mas, com isso, destruímos a Democracia.

Quando olhamos para o cancelamento de um talk show como o de Jimmy Kimmel, corremos a culpar Donald Trump e o seu pendor autoritário, mas esquecemos outros protagonistas, que permanecem na sombra, como Larry Fink ou Peter Thiel.

A cadeia de televisão ABC é detida pela Disney, que, por sua vez, é controlada em grande parte por gigantescos fundos financeiros como a BlackRock, a Vanguard e a State Street. Para se ter uma ideia: estas três empresas gerem, em conjunto, mais de 25 triliões de dólares em ativos, que vão desde a indústria de armamento à farmacêutica, do setor financeiro aos media e ao entretenimento. Para comparação, o valor global das economias do G7 está estimado em 58 triliões.

Independentemente das razões mais profundas para este afunilar das liberdades civis, e do poder da oligarquia financeira global sobre as nossas instituições, com tentáculos que vão da alta finança à indústria, à política e aos media, a verdade é que episódios como este, ou como os que envolveram outros apresentadores de Late Night, como Stephen Colbert, fazem temer pela saúde da democracia americana e, por extensão, das democracias ocidentais.

Talvez fosse bom, antes de culparmos Donald Trump por todos os males do nosso tempo, pensarmos no papel que estes fundos têm nas partes mais banais das nossas vidas e na forma como influenciam as decisões das empresas em que são acionistas: desde a comida que comemos, aos medicamentos que tomamos, aos créditos bancários que nos esmagam e, finalmente, aos programas de televisão que assistimos.

Trump ou Ursula von der Leyen são a face visível de um sistema global enfermo e corrompido. Mas quem verdadeiramente puxa os cordelinhos deste teatro de fantoches são figuras como Fink, Thiel e a mão invisível dos mercados. É contra eles que teremos de lutar para salvar a democracia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Speakers' Corner 50

Balas não cantam baladas

“Bella Ciao” é uma antiga balada revolucionária italiana, nascida entre as camponesas dos campos de arroz do norte de Itália, no final do século XIX. Mais tarde foi retomada pelos partisans da Segunda Guerra Mundial, tornando-se hino da resistência antifascista. Nos anos 60 ganhou nova voz nos movimentos estudantis e, já no nosso tempo, regressou à cultura popular através da série da Netflix La Casa de Papel. A canção, que fala de liberdade, sacrifício e esperança, atravessa gerações como símbolo de uma utopia humanista feita de resistência, solidariedade e luta por uma vida melhor.

Na passada quarta-feira, dia 10, no campus da Universidade do Utah, o influenciador da direita radical Charlie Kirk, de 31 anos, foi abatido a tiro por um atirador furtivo que disparou a 183 metros de distância a partir do telhado de um prédio. A bala atingiu-o na carótida. O alegado autor, Tyler Robinson, de 22 anos, terá inscrito nas balas, entre outras mensagens ligadas ao movimento de esquerda radical Antifa, as palavras “Bella Ciao”.

Kirk era conhecido pelas suas posições misóginas e hostis aos direitos das minorias. A sua retórica conservadora e divisionista alimentava confrontos no espaço público, muitas vezes incitando ao ódio e à intolerância. Por cruel ironia acabou vítima do mesmo porte de armas que sempre defendeu.

Pouco se sabe, ainda, sobre as motivações do atirador. Ao que parece, Robinson era próximo da causa LGBTQ+ e, alegadamente, de uma certa esquerda radical antifascista. Mas, o essencial, neste momento, é compreender que vivemos num tempo em que os extremismos, sejam à direita ou à esquerda, já não se limitam a debater ideias. Empunham armas, impõem-se pela violência e destroem, com a sua intolerância, o espaço público, que deveria ser a casa comum das nossas democracias.

Mais chocante do que o atentado em si, um assassinato fútil e frio, cometido a céu aberto, é a polarização que tomou conta do debate mediático. Populismos de ambos os lados trocam acusações e hesitam na condenação clara e necessária do sucedido. Multiplicam-se tentativas de justificar o injustificável, como se alguma morte pudesse ser legitimada por razões ideológicas.

Num regime aberto e liberal, toda a violência deve ser condenada. A liberdade de opinião e de expressão tem de ser preservada, mesmo para quem pretende negá-la aos outros. O facto de Kirk defender o silenciamento de minorias não legitima que fosse condenado à morte por alguém que se via como parte dessas minorias. A bala que o matou não foi justiça. Foi intolerância, e prova da doença que corrói a democracia e destrói a liberdade.

Os Estados Unidos carregam infelizmente uma longa tradição de violência política. De Lincoln a Martin Luther King, dos irmãos Kennedy a Harvey Milk. Mais grave do que acrescentar mais um nome a essa trágica lista de óbitos é perceber como chegámos a um ponto em que radicalismo e intolerância substituem o debate pelo insulto e o diálogo pelas armas. Quando a morte se torna argumento político, é a democracia que deixa de respirar e a liberdade que morre por dentro.

No seu célebre “paradoxo da tolerância”, o filósofo britânico nascido em Viena, Karl Popper, alertava para a necessidade de as democracias liberais limitarem o discurso de ódio e as narrativas extremistas como única forma de se protegerem da intolerância. Mas esta teoria contem, dentro de si, um dilema. Até que ponto a luta contra o discurso de ódio não reproduz os mecanismos autoritários que procura evitar, conduzindo, em última instância, a gestos como o de Tyler Robinson?

A liberdade estará sempre em risco quando as armas da intolerância são empunhadas em seu nome. Não são as balas que garantem a democracia ou nos protegem dos extremismos, sejam de esquerda ou de direita. É precisamente a coragem de dizer não à linguagem das balas.

Porque as balas não cantam “Bella Ciao”. Apenas calam a voz da Liberdade.

 

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Speakers' Corner 49

O fim do Contrato Social

Nos últimos dias, o conceito de responsabilidade política tem estado nas bocas do país, a reboque, perdoem-me a ironia, da tragédia do Elevador da Glória. O próprio Presidente da República, sempre pronto a disparar comentários políticos, veio a terreiro referir-se ao tema, indicando explicitamente o escrutínio popular expresso no voto das próximas eleições autárquicas como forma imediata de assacar responsabilidades políticas ao autarca de Lisboa, Carlos Moedas.

Este, por seu lado, tentou esgrimir os argumentos da fuga ou da coragem política para justificar o injustificável, recorrendo a terminologias abjetas e inqualificáveis para classificar os adversários políticos e usando exemplos indecorosos ao evocar figuras que já não estão entre nós para se defender. Foi o caso de Jorge Coelho e da famosa Ponte Hintze Ribeiro, mais conhecida pela tragédia de Entre-os-Rios.

No meio desta cacofonia, talvez seja importante regressar ao que antecede a responsabilidade política, nomeadamente, o famoso Contrato Social. Só assim se percebe como, nos nossos dias, se confunde ética individual com escrutínio, este com responsabilidade política e, finalmente, com moral pública.

O Contrato Social teve origem no final do século XVIII, com os contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, que teorizaram sobre a aliança entre governo e população, consubstanciada num pacto entre as partes. Apesar das diferenças entre eles, uma ideia era comum: os indivíduos organizam-se em sociedade estabelecendo regras e acordos para garantir direitos, deveres e um convívio pacífico sob a autoridade de um poder político legítimo. Tratava-se de um pacto em que as pessoas abriam mão de parte da sua liberdade em troca da proteção e segurança oferecidas pelo Estado.

Os direitos e deveres individuais eram definidos a partir desse pacto, que estabelecia regras e limites ao poder do governante. Cada pessoa renunciava parcialmente à sua liberdade natural para garantir a sobrevivência coletiva e direitos civis. A autoridade do Estado emanava desse consentimento dos governados, sendo legítima apenas enquanto respeitasse os termos do pacto. O Contrato Social fundamenta a ideia de responsabilidade política e a obrigação do governante de prestar contas à sociedade, servindo de base teórica à legitimidade do poder político e da organização das sociedades modernas.

Compreender estas raízes é essencial para perceber o princípio do bem comum e o próprio exercício de cargos públicos, em que os governantes devem estar ao serviço dos cidadãos. A tragédia que vivemos hoje, visível nos incêndios, na falência do SNS, numa justiça que não funciona, num sistema de ensino caduco e depauperado, num elevador que cai, ou até mesmo numa SATA em colapso, no Ilhéu que fecha a banhos ou na Praia do Monte Verde, é que os governantes deixaram de garantir o bem comum, a tal proteção e segurança do Estado, e passaram a cuidar apenas do seu interesse pessoal. Os partidos políticos deixaram de ser plataformas ideológicas de alternativa governativa e tornaram-se máquinas de disputar eleições, cujo único objetivo é a sobrevivência dos seus dirigentes.

Mais grave ainda é transformar eleições em plebiscitos sobre a responsabilidade política, ou a ausência dela, dos candidatos. Com isso, legitima-se a sua própria infidelidade ao princípio maior da responsabilidade moral dos governantes: a honra e o cumprimento estrito dos termos do Contrato Social. Bloco a bloco, esse contrato vai-se esboroando a cada tragédia, a cada incêndio, a cada política pública falhada, num acumular de incumprimentos que termina na dissolução da premissa essencial de um Estado de Direito: a confiança dos cidadãos nos governantes e no próprio Estado.

Jorge Coelho não se demitiu por ter lido qualquer relatório, mas porque tinha consciência moral do seu papel enquanto governante. Ao contrário de Carlos Moedas, e outros como ele, que não se demite, exatamente, porque não tem um pingo de moral ou mesmo de consciência.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Speakers' Corner 48

“Bombãs” e outras torturas medievais

Perdoem-me os tradicionalistas e os conservadores, os guardiões dos rituais seculares e das memórias antigas, mas o uso e o abuso de foguetes, roqueiras e “bombãs” nas festas populares das nossas ilhas tornou-se absolutamente insuportável.

O plácido verão açoriano, outrora pautado pela serenidade própria do isolamento insular, transformou-se numa opressiva sucessão de petardos que rebentam a toda a hora, meses a fio e nos momentos mais improváveis, por cima das nossas cabeças, num festival ensurdecedor digno de um cenário de guerra terceiro-mundista. Desde a Páscoa e o Santo Cristo, passando pelas coroações do Espírito Santo, até ao último santo de freguesia, lá nos idos de Setembro, a ilha inteira parece mergulhada num estardalhaço de pólvora e estrondo. Não há manhã, tarde ou noite em que o ar não seja rasgado por sucessivas e ritmadas explosões que nada anunciam, a não ser a paciência a desfazer-se de quem vive nas redondezas do rebentamento. Há casos, como é o meu, em que o lançamento dos ditos é feito sempre do mesmo lugar, paredes meias com o remanso do lar, invadindo-nos o silêncio com a força de um pontapé nos tímpanos.

Se outrora se compreendia a função prática dos foguetes, sinalizar a festa a longas distâncias, anunciar uma procissão ou marcar a saída de um cortejo, hoje, na era das telecomunicações, o ribombar súbito e ensurdecedor destes estampidos não passa de uma forma arcaica e torturante de nos enlouquecer.

Seria bom, se não for pedir muito, que alguém com assento nas Irmandades, nas Comissões Fabriqueiras, na Santa Casa ou na Casa do Povo nos explicasse o porquê de, em pleno século XXI, ainda andarmos a usar este método medieval de comunicação. Há alguma explicação plausível para esse trovão invasivo e arcaico que irrompe repetidamente pelas nossas vidas com a violência de uma bomba, nas horas mais esdrúxulas e inconvenientes? E haverá alguma alma amiga, ligada à pirotecnia, que me esclareça a dúvida sobre a potência da pólvora que, à medida que perco o cabelo, a visão e a audição, parece ser cada vez mais forte e perturbadoramente sonora?

Já para não falar no impacto ambiental. Em nome da tradição, lançam-se indiscriminadamente para o ar cartuchos de plástico com pólvora, sem olhar às consequências, caindo depois aleatoriamente no mar, nos campos ou mesmo nos telhados das casas, sem controlo, vistoria ou sombra de regulamento que nos valha.

Não se trata de acabar com a festa, mas de perceber que a festa não precisa de ser estrondosa para ser genuína. E até há alternativas, com luzes, lasers, música e pirotecnia silenciosa, que já se fazem noutras partes do mundo. Mas, por cá, insiste-se no medievalismo, como se a devoção tivesse de ser medida pelo número de decibéis que emite e pela pólvora que consome.

Depois há a questão das horas. Se antes havia uma lógica que se percebia e uma cadência que estruturava o anúncio da festa, agora reina a anarquia do barulho. Rebenta-se às oito, às oito e meia, às dez, às onze, às quatro da tarde, às seis, às dez da noite, à meia-noite ou até mais tarde. Tudo ao sabor da devoção do mordomo ou do grau de alcoolemia do “tio Joaquim”, que, de beata em riste, se entretém a atiçar os foguetes sem olhar a hora, a vizinhança ou a Lei do Ruído.

Na eterna dicotomia entre progressistas e conservadores, Chesterton lembrava que “a tradição é a democracia dos mortos”. É verdade que o mundo não pode ser feito apenas de inovação, e há tradições que merecem ser preservadas. Mas certas tradições, sobretudo aquelas que perderam o sentido e se mantêm apenas por inércia, não são mais do que um incómodo disfarçado de devoção. As festas são lugares de encontro e de comunidade. Mas este estrépito ensurdecedor dos foguetes e “bombãs” já não une nem informa, apenas mói e cansa.

Talvez esteja na hora de deixarmos os mortos em paz e oferecermos aos vivos um verão menos parecido com uma guerra de trincheira.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Speakers' Corner 47

Perseguidores de tempestades

Nos últimos dias, a comunidade surfista açoriana esteve em estado de alerta em antecipação à chegada da ondulação originada pelo furacão Erin.

Nascido de uma onda tropical que se formou próximo de Cabo Verde, no dia 11 de agosto, quatro dias depois, ao aproximar-se das Antilhas e do mar das Caraíbas, o Erin atingiu a categoria de furacão. O que o torna particularmente extraordinário foi o seu impressionante crescimento à medida que curvava pelo Atlântico em aproximação aos Estados Unidos, tornando-se o furacão que mais rapidamente atingiu a categoria 5 na escala de Saffir-Simpson. Passou da categoria 1, com ventos na ordem dos 120 km/h, para a categoria 5, com ventos superiores a 250 km/h, em apenas um dia.

Felizmente, o Erin desenvolveu-se maioritariamente sobre o mar, afetando ligeiramente as ilhas das Caraíbas e já como tempestade tropical atingiu as Bermudas, provocando chuvas, alguns cortes de energia e dificuldades nas ligações aéreas. Ironia do destino, os principais impactos do Erin foram, afinal, as fortes inundações que causou em Cabo Verde, ainda na sua fase inicial, e, agora, a poderosa ondulação que gerou ao longo de todo o Atlântico Norte.

Os surfistas são seres especiais, buscam a agitação onde outros procuram a calmaria. O surf, afinal, é um jogo de paciência, mais de espera e de busca do que de ação, mais de antecipação do que de agitação. Somos, por assim dizer, vindimadores de tempestades, e a emoção única das ondas talvez só seja igualada pela excitação de imaginar uma ondulação a cruzar vastos oceanos até se materializar, de forma pura e intocada, em ondas no litoral escondido e isolado da ilha.

Ontem, enquanto os banhistas eram surpreendidos por ondas inusitadamente grandes, os surfistas percorriam a costa em busca do pico perfeito, daquela onda única e rara que só quebra circunstancialmente, com as condições certas. E, por toda a internet chegavam relatos dessa ondulação gigantesca, com ondas de 24 metros a atingirem a costa leste dos Estados Unidos e previsões de vagas de quase 20 metros, em pleno agosto, na costa portuguesa.

Felizmente para uns, decepcionante para outros, o Erin passou tranquilamente pelas ilhas açorianas, com ondas a rondar os 2 metros, perfeitamente aceitáveis para os surfistas de fim de semana que infestam as praias da ilha nesta altura do ano.

Mas, o que importa reter são os dados globais destas tempestades e o que elas representam para os Açores. A verdade é que temos assistido a um aumento significativo não só do número de tempestades como também, e mais grave, da sua intensidade. Os dados dizem-nos que, nos últimos 100 anos, os Açores passaram a ter três vezes mais tempestades tropicais e furacões do que no início do século XX, sendo as décadas de 70 e 90 as que registaram maior número. Outro dado significativo é a intensidade: cinco grandes furacões atingiram os Açores nos últimos 20 anos. Desde o Gordon, que cruzou o arquipélago em setembro de 2006, a sul de São Miguel, ainda como furacão de categoria 1, até ao Lorenzo, que assolou as ilhas do Grupo Ocidental nos primeiros dias de outubro de 2019, também ainda como furacão de categoria 1, atingindo as Flores e o Corvo com ventos sustentados de 100 km/h e ondas na ordem dos 15 a 20 metros, causando os estragos que todos conhecemos.

O que isto nos diz é que a natureza não se preocupa com as aflições humanas. Como dizia Pessoa: “A natureza não tem coração; é de uma indiferença que ofende”. Somos nós, os humanos, que temos de aprender a compreendê-la, a aceitar-lhe os humores e a saber viver com ela. Isso significa que não vale a pena contrariar os desígnios do clima, nem querer, arrogantemente, enfrentar as suas forças que, como todos os surfistas sabem, se estão nas tintas para com os desejos ou ambições dos homens.

Se não soubermos moldar-nos ao que a natureza nos oferece, acabaremos inevitavelmente por ser destruídos por ela.


quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Speakers' Corner 46

A Primeira Lei de Newton

Portugal arde.

Com a fatalidade de um destino traçado e a regularidade de um relógio solar, o país consome-se, ou é consumido, pelo fogo no verão. Esta sina triste e aparentemente imutável repete-se ano após ano, com o rigor de uma lei por entre o calendário das procissões e das férias dos veraneantes. Uma verdadeira “Volta a Portugal”, não de bicicletas, mas de labaredas e de fumo.

Pelas notícias, somos inundados (perdoem-me a ironia) pelo suor banhado de espanto, coragem e exaustão dos bombeiros; pela fúria de alguns autarcas; pela aflição das populações; e pelos discursos gastos dos políticos de Lisboa que fogem das perguntas dos jornalistas ou fazem brindes com cervejas na festa do Pontal. Tudo isto em diretos televisivos incessantes, que procuram a emoção crua da catástrofe num guião estudado de desilusão e medo.

E o país arde.

E, como sempre, lamentamos a crónica falta de meios, os aviões que avariam, os eucaliptos que tomaram conta da paisagem como uma praga movida pela avareza e pelo lucro, e a sempre prometida mas nunca cumprida gestão do território, que os especialistas repetem há décadas como sendo o mais profundo e premente problema do país. Desertificámos o interior e, com ele, colocámo-nos a todos em risco.

Vivemos num tempo que se desmaterializou, que se desprendeu do solo, da terra, das culturas, das pastorícias, das estações. Como dizia há dias Henrique Pereira dos Santos, deixámos de comer cabrito para comer salmão e abacate. Os cabritos cresciam nas serras, alimentando-se do mesmo combustível que hoje alimenta os fogos que crescem sem travão, ao sabor do vento e de décadas de desertificação. Os salmões crescem em tanques, à base de ração de soja e antibióticos. Os abacates chegam de produções intensivas, imunes às restrições da sazonalidade e banhados numa enxurrada de rega e fertilizantes.

Esta artificialização dos ritmos e contextos coloca-nos numa condição permanente de alerta em que, ironicamente, somos ao mesmo tempo vítimas e agressores. Todo um mundo que desapareceu e recusamos adaptar-nos ao novo que surgiu.

Paradoxalmente, aqui na ilha, um autarca confrontado com uma óbvia e inacreditável asneira de urinóis e águas residuais de um evento a correrem sem freio para a ribeira e o mar respondeu candidamente: “sempre foi assim”. Perante o absurdo, a reação foi a resignada aceitação da barbárie, como se a estupidez fosse uma fatalidade da natureza, numa espécie de híper-conservadorismo que recusa a mudança, o progresso e até o próprio bom senso.

Estes dois movimentos, aparentemente opostos, um mundo rural desertificado e uma rudeza que se repete, radicam afinal no mesmo princípio: a inércia.

No país que arde e no autarca que se conforma há a mesma incapacidade de perceber que o mundo à volta se transforma, se modifica, que o mundo pula e avança num perpétuo movimento de constante evolução. O “sempre foi assim” traduz exatamente essa incapacidade de reconhecer que o mundo, afinal, já não é assim.

Da mesma forma que em Portugal continental o interior foi abandonado por décadas de migração para as grandes cidades, também nas ilhas o litoral se aburguesou, por assim dizer. Tornou-se finalmente habitado, fonte de prazer e fruição. Onde antes vivia o vazio e a indigência, hoje multiplicam-se turistas, escolas de surf, banhistas de diferentes proveniências e costumes. Sinalizando, numa inescapável fluorescência, que as coisas afinal já não são assim e que temos forçosamente de nos adaptar a elas.

Newton explicou que um objeto, esteja em repouso ou em movimento, não muda o seu estado a menos que seja forçado por uma força exterior. Já que nos recusamos a aceitar Newton, que ao menos nos lembremos de Darwin para perceber que, se não fizermos alguma coisa diferente do que “sempre foi”, se não nos adaptarmos, acabaremos fatalmente por ser os agentes da nossa própria autodestruição, tanto pela (má) ação como pela inércia.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Speakers' Corner 45

O Desafio Arquipelágico

Ao fim de quase trinta anos a viver nos Açores e mais de vinte como filho de açorianos no continente estou convicto de que o maior desafio que estas ilhas enfrentam, ainda hoje, é o desafio arquipelágico.

Não se trata apenas de afirmar a tão glosada e tantas vezes mal interpretada “açorianidade”, mas de construir uma verdadeira identidade arquipelágica. Una, coesa e realmente interdependente entre si. O grande desafio destas ilhas é conquistar a consciência de um arquipélago que se reconheça como tal, feito das suas nove partes, mas unido na certeza de uma realidade comum, partilhada por todos, entre o mar e a terra, e de um povo moldado na dicotomia entre os dois.

Desde os primeiros povoamentos que estas nove ilhas se mantêm de costas voltadas umas para as outras. Hoje, continuam a perder-se em bairrismos fúteis e disputas estéreis. Basta ver como as decisões políticas, seja de que natureza forem, ainda se fazem, tantas vezes, à medida da pressão local e não de uma visão arquipelágica sobre as ilhas.

E mesmo na diáspora, o açoriano só é “açoriano” para fora. Por dentro, mantém a marca indelével da sua ilha e, dentro dela, da sua freguesia. Como dizia, creio que, Daniel de Sá, pode-se tirar o homem da freguesia, mas não se consegue tirar a freguesia de dentro do homem.

Este apego telúrico, íntimo e inexpugnável, é talvez o traço mais pungente do ser açoriano. Talvez até, junto com a religiosidade, seja o mais premente. Mas, mesmo nessa religiosidade, o traço comum fragmenta-se em mil formas. Até no que poderia ser a mais unificadora das tradições, o culto do Espírito Santo, somos uma manta de retalhos. As sopas das Flores não são as mesmas que as de Santa Maria ou as da Terceira.

Ao longo dos séculos, esta fragmentação foi reforçada por divisões administrativas e políticas. No tempo das donatarias, a lógica era de feudo; mais tarde, os distritos acentuaram rivalidades, criando uma geografia mental onde “ilha vizinha” passou a ser “concorrente” e não “parceira”. Já na autonomia, a tripartição entre ilhas e cidades ecoa, de certa forma, as três pessoas do Espírito Santo, distintas, mas que raramente funcionam em verdadeira comunhão.

O grande desafio autonómico de 1976, que em breve comemoraremos (esperemos que de forma séria e não apenas celebratória e politicamente esvaziada), era e continua a ser a construção de uma verdadeira consciência de união arquipelágica. Olhando para o que foi feito nestes quase cinquenta anos, fica a sensação de que falhámos em criar um património identitário conjunto. Continuamos sem uma relação filial entre nove ilhas tão distintas e distantes, mas necessariamente dependentes umas das outras.

Se tivesse de assinalar os verdadeiros motores desse movimento eles seriam, não as formulações políticas, mas a SATA, a Universidade dos Açores e, fundamentalmente, a RTP-Açores. Cada uma, à sua maneira, fizeram mais pela ideia de Açores do que meio século de autonomia. A companhia aérea, ligando as ilhas e estas ao exterior. A universidade, dando-lhes lastro cultural, científico e diplomático, até. E a RTP-Açores, talvez a mais importante de todas, pelo conhecimento real que permitiu entre as ilhas dando-se os açorianos a conhecer entre si através dos ecrãs da televisão.

A identidade constrói-se com esse conhecimento mútuo, com partilha de sensibilidades e afectos, com o acto simples, mas poderoso, de mostrar a um açoriano do Corvo a realidade de outro em Santa Maria. E, nestes cinquenta anos, que agora se celebram, talvez tenha sido a RTP-Açores, mais do que ninguém, a conseguir esse abraço arquipelágico. Num território que vive de costas voltadas, é a televisão quem, com imagens e palavras, aproxima o que a geografia e a história tantas vezes separam.

Resta-nos esperar que talvez um dia essa união não dependa só das ondas hertzianas, mas das ondas reais de cooperação e reconhecimento mútuo e que nos viremos todos, finalmente, de frente uns para os outros.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Speakers' Corner 44

A frustração de uma petição

Nestes tempos conturbados que vamos vivendo, é frequente ouvirmos os políticos nas televisões falarem da erosão dos valores, da falência da democracia, da ascensão dos populismos e do fantasma de novos totalitarismos que pairam negros e ameaçadores sobre nós, como nuvens de mau agoiro.

A verdade é que esta luta da democracia pela sua autopreservação é já antiga. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial que as democracias ocidentais têm procurado manter o Estado Social e defender o seu contrato com os cidadãos. Não poucas vezes, essa defesa passou pelo apelo à participação cívica e pela criação de instrumentos de democracia direta, como é o caso dos referendos ou, mais concretamente, das petições. Com estes instrumentos, pretendia-se incentivar os cidadãos a fazerem parte do governo democrático, indo mais além do que a mera prática do dever cívico do voto nos atos eleitorais.

No enquadramento constitucional português, o direito de petição está consagrado desde 1976, tendo sido reforçado com a revisão constitucional de 1989 e regulamentado pela Lei n.º 43/90, de 10 de agosto, que estabelece as condições do seu exercício por cidadãos e entidades coletivas. Este direito permite a qualquer cidadão (português ou estrangeiro residente) recorrer aos órgãos de soberania para defender direitos ou propor medidas de interesse geral.

Ao nível da União Europeia, qualquer cidadão dispõe do direito de petição ao Parlamento Europeu, consagrado no artigo 227.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE e no artigo 44.º da Carta dos Direitos Fundamentais. As petições europeias constituem um canal direto entre cidadãos e instituições da UE, reforçando a democracia participativa. Destacam-se particularmente em temas como o ambiente, a saúde pública ou a proteção de direitos fundamentais.

Em ambos os níveis, nacional e europeu, as petições são instrumentos centrais de participação democrática, permitindo aos cidadãos contribuir ativamente para os processos políticos e legislativos, com procedimentos claros, simples e, felizmente, cada vez mais acessíveis graças à digitalização.

O problema é que, infelizmente, e com particular gravidade ao nível regional, as petições têm sido sucessivamente tratadas com uma espécie de sobranceria altiva por parte de deputados, comissões e parlamento. O instrumento peticionário é encarado, nomeadamente pelo parlamento regional, como mais uma maçada regimental que é necessário cumprir com enfado. Recorrentemente, as petições são admitidas, organizam-se audições por parte das comissões competentes, elaboram-se relatórios vazios, em que os partidos que suportam os governos se limitam a fazer eco daquilo que os diferentes departamentos governamentais lhes impingem e, tanto em sede de relatório como de debate, abstêm-se de emitir parecer, fazer recomendações ao governo ou, e aqui os restantes grupos parlamentares são igualmente responsáveis, apresentar qualquer tipo de proposta legislativa ou de resolução que acolha as preocupações dos cidadãos e procure efetivamente resolver os problemas que estas petições sinalizam.

O caso mais recente é o da petição SOS Monte Verde, em que, após inúmeras audições e, até, visitas ao local, tanto a comissão como o plenário foram incapazes de olhar com intenção para as propostas feitas pelos cidadãos com vista a uma solução equilibrada para o problema de contaminação das águas da praia do Monte Verde e das ribeiras que aí desaguam. Pelo contrário, expuseram-se ao ridículo de apenas corroborar as ações que as secretarias envolvidas alegam estar a implementar e que, como ficou claro em julho último, com uma nova interdição a banhos no local, comprovadamente não servem nem resolvem o problema.

Quando tanto se fala em defender a democracia, talvez se devesse começar por aqui: pela proteção e pelo respeito por um dos poucos gestos de democracia participativa que os cidadãos ainda têm ao seu dispor.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Speakers' Corner 43

A heteronímia do lugar

É comum, na indústria do turismo, ensaiarem-se diversas explanações sobre a identidade dos destinos, procurando identificar com exatidão matemática as características únicas de cada lugar, a cultura, a história, as marcas do território e as idiossincrasias locais, com o objetivo de determinar a sua capacidade de atrair e fidelizar visitantes.

Nas últimas décadas, a massificação tornou-se um dos fatores mais determinantes na evolução dessas teorias. Fenómenos como a gentrificação, a desertificação e, sobretudo, a artificialização infiltram-se na identidade dos lugares, adulterando-a ou, como alguns defendem, destruindo-a. É como se os destinos passassem por uma espécie de crise de identidade, tanto do ponto de vista endógeno, na percepção que os residentes têm do seu território, como exógeno, refletindo as expetativas e fantasias de quem o visita. Uma espécie de bipolaridade beligerante entre a identidade vivida e a identidade experimentada.

No fundo, é como se o turismo se tornasse um fenómeno autofágico, consumindo-se a si próprio na sua voracidade financeira, muitas vezes dando origem à construção de uma ficção, uma heteronímia do lugar.

O lugar que o residente conhece e vive todos os dias já não é bem o mesmo que o turista visita. E o turista, por sua vez, procura algo que talvez nunca tenha existido. Uma fantasia de pureza, um postal ilustrado com cheiro a lava e sabor a mar. O destino passa então a viver uma dupla (ou tripla) personalidade: é ao mesmo tempo o que é, o que o turista deseja que seja e o que as agências de marketing juram que ele será. As dinâmicas entre turistas e residentes e os efeitos dessas relações, tanto imediatos como a médio e longo prazo, provocam uma multiplicidade de identidades que quase se consomem a si próprias. Ao ponto de já ninguém saber, com segurança, o que o lugar efetivamente é.

Esta confusão, estas personalidades sobrepostas, produzem uma nova forma de pressão sobre o território. Uma pressão que precisa de ser pensada, planeada e trabalhada se quisermos alcançar a tão proclamada sustentabilidade que tanto encanta os discursos políticos e as apresentações das agências de comunicação. E não se trata apenas de preservar o ambiente, controlar fluxos ou compilar planos diretores com números de camas e dormidas, ou estratégias de marketing com slogans sensacionais. Nem de estatísticas, tantas vezes cegas, que acumulam visitantes, mas ignoram experiências, alicerçadas numa visão estanque do destino, em vez de numa abordagem integrada, até holística, do que um território turístico e habitado pode e deve ser.

Trata-se, acima de tudo, de reconhecer essa identidade heteronímica do lugar: sendo autêntico e verdadeiro, mas também múltiplo e contraditório. Entre a vivência do residente e a ânsia do visitante, emerge uma realidade híbrida, simultaneamente genuína e desejada, com tanto de real como de ficcional. É nesta tensão que se constroem os destinos turísticos duradouros: os que sabem equilibrar, em simultâneo, a qualidade de vida de quem os habita e a qualidade da experiência de quem os visita.

Esse é o verdadeiro desafio da sustentabilidade turística: reforçar e potenciar esses dois eixos paralelos e indissociáveis. Porque, sem equilíbrio entre quem vive e quem visita, o destino colapsa. Porque, sem identidade, pouco restará para conhecer além da banal artificialização de um lugar perdido entre pragas de infestantes, águas poluídas, acessibilidades deficientes, expetativas frustradas e uma crescente hostilidade dos locais perante os visitantes.

Os Açores ainda vão a tempo de evitar os erros de um desenvolvimento turístico guiado pelo desordenamento e pela cobiça. Mas, para isso, é necessário que todos encarem esta atividade como mais do que uma nova galinha dos ovos de ouro, ou um inimigo a abater. E sim como um verdadeiro pilar de desenvolvimento futuro, capaz não só de gerar riqueza, mas, acima de tudo, de a redistribuir.

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Speakers' Corner 42

A Insustentável Leveza da Penúria Estival

Perdoem-me os leitores por trazer este pesadíssimo tema à baila num período já quase estival, embora ainda de pouca luz solar e ausente do tão necessitado calor balnear que tanta falta nos faz. Bem sei que discutir finanças públicas em tempo de churrascos pode causar fastio ou azia. Como aquele conhecido que não se cala com a mais recente fofoca da corrida eleitoral local, tema talvez mais em voga, mas igualmente soporífero na morrinha do verão, e que deixamos a falar sozinho à sombra do metrosídero enquanto procuramos o alívio fresco de uma pilsner gelada.

O estado pré-calamitoso das finanças regionais tem levado algumas vozes avisadas a trazer, de novo, para a praça pública o velho tema da revisão da célebre Lei de Finanças Regionais. Vasco Cordeiro, num extensíssimo artigo publicado recentemente neste jornal, e Mota Amaral, ainda ontem, com a gravitas que lhes advém da condição de ex-presidentes do Governo Regional, chamaram ambos a atenção para a suma importância do problema. Alertaram para a sua urgência, os dilemas que envolvem a sua elaboração errática, ou errónea, e, no caso do último, apelaram mesmo a uma espécie de sobressalto cívico regional. Quase um chamamento a uma sublevação de tipo 6 de Junho de 1975, agora em defesa dos interesses pecuniários dos Açores e dos açorianos, se bem entendi da leitura do seu artigo.

O caso é que, de uma forma genérica e muitas vezes generalizada, a ideia subjacente ao direito de autogoverno da Região parece resumir-se a uma espécie de pedinchice insular, como tantas vezes refere o atual Presidente do Governo, por aumento da mesada ao pai centralista, autoritário e castigador, instalado na penumbra faustosa dos salões do Terreiro do Paço. Andamos, como já foi dito, eternamente de mão estendida, agora ainda mais, quando o valor da dívida ameaça fazer colapsar todo o edifício autonómico.

Acumulam-se dívidas a fornecedores, agravam-se os atrasos nos pagamentos, os apoios, mesmo os do COVID, pasme-se, veem-se (ou não se veem) por um canudo escuro e, para cúmulo da desgraça, há já empresas públicas com salários em atraso. E não vale a pena vir dizer que não é bem assim, como ouvi num daqueles debates televisivos, porque até um modesto contabilista saberá que os subsídios de férias são parte integrante e indivisível do vencimento do trabalhador.

Regresso muitas vezes a uma célebre, embora esquecida, frase de Álvaro Monjardino que, confrontado com uma comissão parlamentar para a reforma da autonomia, respondeu com bonomia que o que os Açores precisavam não era de mais ou menos autonomia, mas de um projeto económico para a Região. Cito-a amiúde porque me parece que ali está dito, com clareza, aquilo que continua a ser o verdadeiro problema estrutural dos Açores.

De celeiro real a entreposto atlântico, de pomar de laranjas a abrigo de baleeiros, as ilhas têm-se debatido, ao longo da sua história, com a difícil tarefa de encontrar uma identidade económica que lhes permita criar riqueza e sustentar o seu desenvolvimento. Sem esse modelo, não somos mais do que, parafraseando o meu amigo Nuno Barata, "petchenos" a pedir dinheiro ao pai cada vez que querem apanhar uma bebedeira ou acampar, sem tino nem critério, num desses muitos (talvez até demais) festivais de verão que nos assomam como praga de conteiras.

A ideia de uma suposta solidariedade nacional com esta periferia atlântica, por mais bem-intencionada que seja, padece de uma debilidade fundacional: a incapacidade dos Açores para garantirem a sua própria sustentabilidade económica. Uma Lei de Finanças Regionais deveria ser um mecanismo de compensação solidária pelos custos adicionais da insularidade e pela extensão marinha e geoestratégica que os Açores aportam para a República, e nunca a fonte principal de financiamento de um sistema político regional que há muito se habituou ao desgoverno, a gastar à tripa forra e a nem sequer se dar ao respeito. Ser autónomo exige, também, sabermos ser sérios.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Speakers' Corner 41

SOS Monte Verde (e não só…)

Na semana que passou, a praia do Monte Verde voltou a ser notícia e, de novo, pelas mesmas conspurcadas razões. Análises à qualidade da água obrigaram a Delegação de Saúde a ordenar a interdição a banhos naquela zona balnear. O tema é antigo, está identificado, existem até petições e manifestações sobre o assunto, mas, apesar de todos os alertas, e das sempre rápidas mas incumpridas promessas, o problema continua lá, recorrente e impassível, como uma fatalidade do destino. O tema é, aliás, tão gasto que chega a ser deprimente falar dele.

Já cansa apontar, uma e outra vez, esta atitude negligente com que os Açores e os açorianos olham o mar. A medo e castigo, caixote de lixo avulso e permanente, distante como um vizinho rabugento. Durante décadas, séculos até, ninguém queria saber do mar para mais do que porta de entrada de navios e saída de emigrantes, lugar de trauma ou de morte. A orla marítima era território de pobres e indigentes, deixado ao abandono e à incúria das autoridades. Para o mar escorria, literalmente, o pior de nós mesmos.

A reivindicação do litoral como espaço de vivência, lazer, saúde, fruição e desenvolvimento tem sido um processo estupendamente lento. Com sucessos, como a praia dos Areais de Santa Bárbara ou a onda de Santa Catarina. E com horríveis insucessos, como foi o caso da baía de Rabo de Peixe ou, como agora em evidência, o da praia do Monte Verde, que, qual vítima inocente de violência doméstica, continua a sofrer os abusos do que está a montante dela.

A poluição marinha é um problema humano, que começa na poluição em terra, escorre pelos rios, no caso açoriano, pelas ribeiras, e acaba no mar. A praia do Monte Verde é um exemplo clássico disso. Atualmente, mesmo com milhões gastos em saneamento básico, continuam a existir efluentes domésticos e agroindustriais a escorrer para os leitos das ribeiras e daí para o mar. Estão identificados e sinalizados, e ninguém, por inércia ou eleitoralismo, faz absolutamente nada. Existem mesmo casos de explorações agrícolas que fazem descargas diretas depois das cinco da tarde, ou aos domingos, porque sabem que não há vigilantes da natureza ou GNR para os apanhar em flagrante delito. O pior é que o mar, na sua enorme sapiência, acaba por nos devolver tudo o que nele depositamos, seja lixo ou, como é o caso, matéria fecal.

Coincidentemente, ou não, enquanto os níveis perigosos de E. coli surfavam sozinhos as ondas do Monte Verde, na cidade da Horta os deputados regionais discutiam o relatório da comissão de ambiente sobre a petição SOS Monte Verde e Levada da Condessa, promovida pelo Mário Moura, o Ricardo Cabral e por mim próprio. O aspeto mais triste desse debate inócuo é a forma como os deputados transformam este precioso instrumento de democracia direta, as petições, em simples armas de arremesso eleitoral e político: uns defendendo a situação, outros tentando tirar dividendos eleitorais imediatos de uma suposta oposição.

Neste caso concreto, apesar de um meritório esforço, que concedo e elogio, em ouvir os vários, senão todos, os intervenientes no problema, é incompreensível, e mesmo inaceitável, como a comissão, no seu relatório, se abstém de apresentar qualquer parecer digno desse nome ou proposta de resolução ao governo com vista à efetiva resolução do problema. Tudo não passou, para além de uma manifesta perda de tempo, de mais uma forma de afastar os cidadãos da participação cívica e, com isso, de dar cabo da nossa democracia.

Neste fechar de olhos governativo, justiça seja feita aos candidatos do PS à autarquia, que se disponibilizaram para nos ouvir e, oxalá, para cumprir o desígnio coletivo de salvar o Monte Verde. Até lá, os Enterococos intestinais haverão de continuar a banhar-se livremente um pouco por todas as nossas zonas balneares, seja no Monte Verde, no Porto Pim, na Prainha em Angra ou no Ilhéu da Vila. Resta saber até quando?

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Speakers' Corner 40

A pornografia da dor

Ao contrário do que se diz, o Kama Sutra não é um tratado sobre sexo, mas uma dissertação sobre o amor e a sua prática como forma de alcançar o Dharma, a vida virtuosa, um dos objetivos últimos do hinduísmo. No Ocidente, o Kama Sutra, particularmente nas suas versões ilustradas, foi transformado num catálogo de sugestões sexuais, quase um manual visual de posições de um yoga tântrico e orgiástico. Esse olhar redutor e primário, tão típico da nova visão ocidental, despiu o texto das suas dimensões morais, pedagógicas, culturais, sociológicas e espirituais. Kama Sutra passou a ser sinónimo de sexo e não de amor ou, sequer, de erotismo.

Octavio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano, dizia que o “erotismo é a sexualidade transfigurada”. Uma representação artística e metafórica do gesto carnal, tantas vezes instintivo e animal. O erotismo, ao contrário da pornografia, contém, sugere, invoca o implícito. Vive daquilo que oculta mais do que daquilo que revela. Já a pornografia explicita, massifica, empola e embrutece. Onde o erotismo sublima, a pornografia desvirtua.

No nosso mundo hipermediatizado, na Infocracia de Byung-Chul Han, a realidade tornou-se, ela própria, pornografia. A linguagem perdeu a sua capacidade metafórica para se tornar instrumento de literalidade e, acima de tudo, de brutalidade. E a imagem, saturada, repetitiva, omnipresente e descartável, desprendeu-se da sensibilidade da luz e da criação de atmosfera. Tornou-se uma competição permanente pela atenção e, principalmente, pela excitação do espectador.

No espetáculo mediático, tudo se mede em audiência e a audiência é poder. Nessa luta constante pela atenção, a surpresa, o choque e o excesso são o alimento da voracidade. É nesse combate feroz pela curiosidade do observador que o ciclo noticioso e político se transforma, cada vez mais, em pornografia.

No meio do caos global, num mundo onde os nossos sentimentos se tornaram impermeáveis ao genocídio, é a morte súbita e sem sentido de um jovem atleta que ainda nos comove. Que ainda nos interpela, profundamente, no nosso sentimento de irrelevância e na percepção da fragilidade da existência. Já não é a guerra, nem o extermínio, nem o bombardeamento de civis e hospitais, em ataques à distância perpetrados por drones como em ficções, retransmitidos nos infinitos ecrãs que nos rodeiam em imagens de videojogo, que nos impressiona.

E a imparável máquina mediática sorve e amplifica esse drama. Espreme-o em ciclos infindáveis de comentários, diretos, alertas, análises, numa exposição pornográfica do que é mais privado e pessoal: a morte. Uma pornografia da dor, numa permanente obsessão pelo conteúdo e o seu consumo, que se torna vício e compulsão. A dor real, privada, íntima, é convertida em espetáculo porno. O sofrimento alheio serve o consumo imediato. A comoção é transformada em produto. E, nessa lógica perversa, os próprios protagonistas da tragédia, são arrastados para a exposição pública da sua perda. O luto deixa de ser um processo e torna-se conteúdo comercializável.

Da mesma forma, os políticos procuram o choque que atrai e agudiza a desconfiança. E a política, por sua vez, alimenta-se do mesmo mecanismo. Procura o embate. Amplifica o ódio e a desconfiança. Usa a provocação como afrodisíaco mediático. Usa a baixeza como forma de atração, alimentando o ciclo mediático com o mesmo apelo pornográfico. A mesma banalização do mal. A enumeração de nomes de crianças, supostamente estranhas, ímpias, estrangeiras ao “puro” corpo nacional, serve apenas o excesso, a barbárie, a comercialização do mal como mercadoria política, numa bolsa de valores insaciável de obscenidade e, fatidicamente, de prostituição emocional.

Tal como a pornografia transforma o corpo erotizado em mercadoria sexual, também a política e os media transformam o amor em pornografia, alimentando-se, numa sofreguidão sem fim, do ódio e da dor para sustentar a permanente luxúria do bordel mediático.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Speakers' Corner 39

O partido do povo no mundo dos ricos

Dois acontecimentos distantes e aparentemente desligados entre si tiveram lugar no último fim de semana, um em Lisboa, outro em Veneza. À primeira vista, nada os une, mas, olhando com atenção, talvez revelem duas faces do mesmo dilema: a crise geral do capitalismo democrático.

Em Lisboa, o Partido Socialista ratificou, com mais de 95% de aprovação, a sucessão da sua liderança, entronizando José Luís Carneiro como secretário-geral. Num dos momentos mais difíceis da sua história, o homem de Baião, que muitos veem como um líder de transição, alcança o lugar mais alto do partido e a ambição, legítima, embora remota, de se tornar primeiro-ministro de Portugal.

Depois de oito anos no Governo e de uma estrondosa derrota eleitoral, o PS vê-se confrontado com uma crise quase existencial. Este momento de inflexão em que o partido se encontra tem várias explicações, e pode ser escalpelizado a diferentes níveis. Mas talvez a mais profunda de todas tenha a ver com o descrédito dos cidadãos nas instituições e, bem ou mal, na corporização do PS como símbolo dessa descrença. Ao fim de cinquenta anos de democracia, as pessoas perderam a confiança no Estado. E o PS e o PSD, talvez sobretudo o PS, representam, aos olhos de muitos, essa mesma desconfiança e a sua inefável decadência.

Mas a crise das democracias é também uma crise do capitalismo democrático, que podemos recuar até aos tempos de Tony Blair e a chamada “terceira via”. A forma como os partidos da social-democracia, ou do socialismo democrático, se deixaram capturar pela ditadura do capital e dos interesses e como essa captura degenerou em fenómenos de corrupção e de delapidação do Estado. A história dos últimos 20 anos é feita de crises sucessivas e dramáticas que impactaram profundamente as vidas dos cidadãos e, simultaneamente, o próprio sistema político das democracias ocidentais, reiteradamente assoladas por casos obscenos de corrupção.

O desafio de José Luís Carneiro, e de todo o Partido Socialista, mais do que a Habitação, a Imigração, a Economia ou o seu papel na oposição, é reconquistar a confiança dos eleitores, afastando-se da imagem enquistada de um partido de conluios, esquemas, compadrios e corrupção, refastelado na manjedoura do Estado, em serviço mais de si do que dos cidadãos.

É aqui que se encontra, na minha opinião, o ponto de contacto com esse outro evento marcante destes dias: o casamento do multimilionário Jeff Bezos, em Veneza. O luxo faustoso e o esbanjamento desavergonhado representam exatamente essa desconexão da realidade e o desfasamento do mundo face às enormes desigualdades que o assolam. Não é a riqueza em si, nem a sua ostentação obscena, que choca, não há qualquer novidade nisso. De Nero a tocar a sua lira, a Maria Antonieta e os seus brioches, a história está marcada pela insensibilidade dos ricos face às desigualdades do mundo. O que verdadeiramente impressiona é a forma como a nossa sociedade se tornou subserviente ao capital e à sua ostentação fútil.

A essência de qualquer movimento progressista está ancorada nos valores humanistas de fraternidade, igualdade e solidariedade. O âmago do socialismo democrático é a busca de um mundo de oportunidades iguais, não no sentido de uma igualdade comunista, niveladora, com cidadãos separados entre a casta dos trabalhadores e os dirigentes do politburo, mas sim de uma solidariedade liberal que vise a criação e redistribuição de riqueza rumo a uma vida melhor para todos.

A encruzilhada que o PS enfrenta é a de voltar a ser, verdadeiramente, o partido dos que menos têm, em vez de parecer mais empenhado em não incomodar os que têm tudo. Se quiser recuperar a sua alma, o partido terá de romper com esta amarga complacência e lembrar-se de que nasceu para transformar a realidade e não para se pôr ao serviço dos que, como Jeff Bezos, se julgam donos dela.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Speakers' Corner 38

A via da conciliação

No ano de 327 a.C., na antiga Báctria, hoje parte do Afeganistão, Alexandre, o Grande, desposou a bela Roxana, filha de um nobre persa. O gesto, mais do que político ou romântico, foi a afirmação de uma ideia poderosa: a de conciliação. Alexandre, educado por Aristóteles e considerado o maior estratega militar da história, não se limitou a conquistar territórios e a derrotar exércitos, procurou unir culturas, numa fusão entre múltiplas nações, línguas, etnias e raças, num império de simbiose, não de supremacia.

Dois mil e trezentos anos depois, o mundo parece ter esquecido a lição de Alexandre. A recente escalada de tensão no Médio Oriente, com o surpreendente, embora previsível, ataque aéreo americano ao Irão, utilizando, mais uma vez, as valências de gasolineira no centro do Atlântico da Base das Lajes, revela até que ponto a diplomacia e o diálogo cederam ao estrépito das bombas e à retórica da destruição.

O Ocidente olha para o Irão quase exclusivamente através do véu da teocracia islâmica xiita. Há, no entanto, um erro profundo nessa visão redutora e obscurecida. Ignoramos que o Irão não é apenas um regime, é uma civilização com mais de quatro milénios. Herdeira da antiga Pérsia, berço de avanços intelectuais, artísticos e políticos que moldaram muito do que hoje consideramos pilares da modernidade e da nossa própria civilização, desde a ideia de unidade política territorial à administração pública, da tolerância religiosa à poesia mística.

Reduzir esta complexidade à figura dos aiatolás ou a um inimigo geopolítico é não só injusto e limitado, é profundamente perigoso. Ao ignorarmos o valor histórico e cultural de um povo, abrimos caminho à sua desumanização. E esse é sempre o primeiro passo para a barbárie. Com a agravante de que, numa guerra pela superioridade, aqueles que não temem a morte serão os primeiros a prevalecer.

A atual política externa americana, marcada pelas decisões erráticas e egocêntricas de Trump, alimenta esta lógica maniqueísta e belicista. Desprezando o contexto, confundindo força com liderança, misturando castigo com solução, gerando apenas vazio. E é nesse vazio que se alimentam o ressentimento e o radicalismo, numa avalanche de consequências imprevisíveis.

O que fará a China? Fará cair a sua força militar sobre Taiwan? Putin terá aqui a porta aberta para acelerar ainda mais os seus intentos de domínio territorial sobre a Ucrânia e, quem sabe, sobre o Báltico? E como reagirão a Índia e o Paquistão, ambos potências nucleares? Está a Europa preparada para o recrudescer do horror do terrorismo? E o que fará o Irão, não hoje, mas no futuro?

No TikTok, imagens de rituais xiitas de homens a bater no peito em honra do martírio de Hussein Ibn Ali na batalha de Carbala, em 680 d.C., tornaram-se virais. Para o nosso olhar ocidental, é um espetáculo incompreensível. Mas para milhões de crentes, é a expressão de uma memória coletiva fundada na dor e na resistência, onde o conceito de sacrifício é o elemento fundacional da sua própria visão da vida. Não entender isso é não entender a alma da nação xiita e a identidade do atual Irão, país moldado por essa ideia de martírio. Combater essa visão com mísseis e bombas GBU-57 é como tentar apagar um fogo com gasolina.

O Ocidente, enquanto entidade política e civilizacional, baseada na democracia liberal, no primado da vida humana e nas liberdades individuais, não se deve vergar aos totalitarismos. Mas também não se pode impor ao resto do mundo pela via da destruição. Num tempo em que os líderes mundiais parecem obcecados com o poder e a conquista pela obliteração do outro, talvez valesse a pena lembrar que as civilizações não se constroem com mísseis, mas com ideias. O futuro ergue-se com palavras, não com bombas. Como Alexandre demonstrou ao unir-se a Roxana. E que a via da conciliação é o único caminho que pode evitar que o mundo, mais uma vez, tropece na sua própria arrogância.

 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Speakers' Corner 37

A Vertigem do Fim

Vivemos tempos perturbados. Um pouco por todo o mundo, a loucura impõe-se devastadoramente sobre a vida das pessoas. O ódio tomou conta dos areópagos políticos. O declínio moral, institucional e até humano parece ser o único caminho à nossa frente, como uma frenética avalanche desmoronando-se sobre a montanha das nossas vidas.

Abrimos os jornais, os poucos de nós que ainda os leem, ou percorremos mecanicamente os infinitos canais de notícias, e somos assoberbados por inacreditáveis parangonas, excitações várias, constantes alertas noticiosos e comentários facciosos, num interminável caleidoscópio de embriagada alucinação.

A Europa, outrora um projeto civilizacional de paz e prosperidade, submete-se agora ao desvario da economia de guerra. Passámos do pacote da PAC para o míssil PAC-3. Os discursos políticos fazem-se em torno do medo, da ameaça, da necessidade de se estar “preparado” para um inimigo imposto, mas nunca da urgência de se estar lúcido ou do imperativo de se ser justo.

Israel, sob a liderança de um governo extremista e ultraortodoxo, bombardeia a teocracia iraniana num conflito de consequências inimagináveis. O Médio Oriente volta a arder, como se alguma vez tivesse deixado de arder, e o mundo, que já deixou de se espantar, assiste em silêncio cínico ao genocídio e à obliteração cega e mútua de eternos e inquebrantáveis inimigos. E somos todos cúmplices nessa incapacidade de regressar à raiz da alma, como apelou Rumi.

Em Espanha, um dos últimos redutos da esquerda na Europa, Sánchez estremece com escândalos sucessivos que envolvem corrupção, misoginia e jogos de poder rasteiros. Uma democracia em erosão, onde as instituições vão perdendo credibilidade a cada nova gravação escondida que vem a público.

Por cá, em Portugal, a violência verbal saltou das redes sociais e dos discursos políticos para as ruas, transformando-se em violência real, palpável, física. Sob o disfarce do populismo, a intolerância fascista voltou a ganhar espaço e, o que é mais grave e paradoxal, aceitação. Relativiza-se o inaceitável, desculpam-se os que afrontam os direitos mais básicos, comparando o incomparável. E, no Brasil como cá, transforma-se o humor em crime, a sátira em insulto, a crítica em perseguição, em democracias corroídas pelo ácido do partidarismo.

Na América, outrora terra dos livres, desfilam paradas militares como nos regimes totalitários. Trump e Putin parecem hoje dois lados de uma mesma moeda, uma moeda cujo câmbio será sempre negativo. O sonho do Ocidente morreu. E talvez o mais inquietante seja justamente isso: o colapso da ideia de futuro. O cansaço do mundo é palpável, na linguagem e nos atos do dia a dia. A banalidade do mal, como assinalou de forma clarividente Hannah Arendt.

Na nossa pequenina realidade insular, percebemos agora, ou fingimos que só agora percebemos, que o Hospital Modular não passou de um esquema de contornos pouco claros, onde as decisões foram, no mínimo, erráticas, dúbias e precipitadas. A política tornou-se uma sucessão de gestos apressados e de anúncios vazios, feitos mais para encenação mediática do que para a resolução efetiva de problemas. A IA tomou conta das palavras, tal como o TikTok tomou conta das narrativas. Ao mesmo tempo, o drama subterrâneo das drogas sintéticas alastra pelas ruas, pelas casas, pelas famílias, como um vírus tóxico que se insinua na pele da sociedade.

Até o tempo parece conspirar com este mal-estar difuso: os nevoeiros de São João molham-nos até à alma, com a sua morrinha húmida e silenciosa. Há um clima de fim que paira no ar, um cansaço acumulado, um suspiro abafado, uma sensação de que tudo o que poderia ser feito já não será. Vivemos cercados por ruínas, algumas visíveis, outras escuras e interiores. O que nos resta é não perder a capacidade de espanto. A pulsão de resistência.

Talvez este não seja ainda o fim. Mas é, indiscutivelmente, o início dessa vertigem.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Speakers' Corner 36

História de um país sem rumo

Quem calcorreia hoje as ruas de Ponta Delgada, descendo da Machado dos Santos à António José d’Almeida, rumo à Matriz, dificilmente saberá quem foram esses expoentes do republicanismo que dão nome a duas das mais importantes artérias do nosso burgo. Machado Santos, vice-almirante, herói do 5 de Outubro, foi um perpétuo revolucionário, tido como o “pai da República”. António José d’Almeida, médico e opositor da monarquia, ficou conhecido por um manifesto publicado em Coimbra, na sua juventude, intitulado Bragança, o Último, que o levou à prisão e ao estatuto de herói republicano. Mais tarde viria a ser Presidente da República, entre 1919 e 1923. Ambos maçons, como muitos republicanos da época, simbolizam o espírito de um tempo dividido entre a agitação contestatária e a aspiração progressista. A Primeira República foi um imensamente agitado período de transição entre uma monarquia de setecentos anos e uma ditadura, que duraria quarenta e oito, e que pretendia vir repor uma certa organização e esteio a um país desgovernado. Nesses curtos 16 anos, Portugal teve 45 governos e 8 presidentes.

Se um futuro historiador olhar o país daqui a 100 anos, reconhecerá certamente as mesmas tendências, as mesmas aspirações populares incumpridas e os desmandos políticos de elites conspiracionistas. Provavelmente calcorreará ruas com nomes como Costa ou Montenegro, nomes que, como tantos outros, cairão também no esquecimento. A história, como dizia Mark Twain, não se repete, mas rima. E há, neste tempo que vivemos, uma impressão forte de fim de regime. Cinquenta anos após Abril, o país parece soçobrar sob o peso do que ficou por cumprir.

Dos famosos três D’s que Medeiros Ferreira levou ao Congresso Democrático de Aveiro, em 1973, e que Melo Antunes transportaria para o programa do MFA, a descolonização redundou num desastre, a democratização sucumbiu ao poder do capitalismo partidário, e o desenvolvimento coloca Portugal entre os países da UE com maior desigualdade na distribuição da riqueza. Só Bulgária, Roménia, Letónia e Lituânia nos ultrapassam nesse triste ranking do índice de Gini.

Se há ilação a tirar das últimas eleições, é a de que existe um descontentamento generalizado no país, um povo descrente e cansado e uma classe política incapaz de se regenerar e de incutir esperança nos eleitores. O mesmo historiador futuro, ou uma cartomante de agora, dirá, e com razão, que o momento é propício a sebastianismos, a líderes salvíficos que, acoberto de um manto de nada, como um nevoeiro diáfano, se apresentam como portadores da ordem, do bom-senso e do progresso, mesmo que falso e mentiroso e empacotado em insultos e alarvidades.

Quando o centro ruir, a democracia ruirá com ele. Muito provavelmente, o país elegerá um ex-almirante de fama vacinal para o cargo de mais alto magistrado da Nação. Um primeiro-ministro pouco transparente e de passado duvidoso cairá em desgraça num escândalo judicial envolvendo empresas e favores. Montenegro cairá, e o PPD cairá com ele. E, depois disso, um líder populista e demagogo poderá ascender ao poder, erguido em promessas doces e inebriantes de autoridade, limpeza e patriotismo. O velho e reconhecido “pôr ordem nisto”, ou o salazarento “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. A direita será toda ela populista, com tudo o que isso traz de reacionarismo e nacionalismo bacoco. O Almirante, então, dirá que o país precisa de estabilidade e dará o seu magnânimo aval a uma coligação entre Ventura e um qualquer Passos Coelho da vida. A esquerda, órfã e desorientada, será remetida a uma oposição triste e prolongada. E Portugal mergulhará, de novo, numa bem-comportada e resignada noite autoritária com o Almirante ao leme, de fato assertoado e barba grisalha, sabe-se lá com que rumo.

Oxalá me engane. Porque se não irei acabar os meus dias na frente de um qualquer pelotão de fuzilamento por delito de opinião e tráfico de liberdade de expressão.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Speakers' Corner 35

Crónica de um desastre anunciado

À hora em que escrevo, estes são os factos conhecidos: Sónia Nicolau, ex-militante socialista e candidata independente à Câmara Municipal de Ponta Delgada, terá sido contactada pela vice-presidente do Partido Socialista dos Açores e secretária-coordenadora do partido em São Miguel, Cristina Calisto, com uma proposta de coligação liderada pelo PS, na qual a candidata independente ocuparia o segundo lugar.

De acordo com um comunicado, Sónia Nicolau submeteu essa proposta à consideração dos seus apoiantes, que a rejeitaram por unanimidade.

Em declarações à Antena 1 Açores, Cristina Calisto assume o contacto, mas nega tratar-se de uma proposta formal de coligação, muito menos em nome do partido, afirmando que se tratou apenas de uma manobra exploratória, feita a título pessoal e individual, para aferir da sensibilidade de Sónia Nicolau perante a eventualidade de uma coligação.

Após um processo muito atabalhoado de escolha de candidatos, o PS parece incapaz de se alinhar numa estratégia coerente, ou sequer num rumo definido. Primeiro, geriu desastrosamente o dossier Sónia Nicolau, hostilizando e até vilipendiando uma militante e ex-deputada, de forma imprópria para um partido livre e democrático. Depois, Isabel Rodrigues, que no papel parecia ser uma escolha qualificada e aceitável, revelou-se um nado-morto, ausente, titubeante, dir-se-ia mesmo, desistente.

Depois da hecatombe eleitoral de maio último, o PS corre para apanhar os cacos de um partido em estado catatónico, sob ameaça de uma eutanásia eleitoral nas autárquicas que se aproximam. Mas nem o desespero de quem vê chegar o fim de uma era explica tantos erros, tanta incapacidade estratégica e tamanha inabilidade política.

Já o escrevi antes: Pedro Nascimento Cabral é um mau presidente. Errático, autoritário, sem visão. Bastaria a gestão do Mercado da Graça para lhe negar a reeleição. Mas há mais. A candidatura a Capital Europeia da Cultura, o seu triste desfecho, e a atual designação como Capital Nacional da Cultura 2026, mergulhada numa deriva populista, sem programa e à distância, a meros seis meses do início, são igualmente reveladores de um mandato vazio e desperdiçado.

Este era o momento ideal para o PS reconquistar a Câmara de Ponta Delgada, que não lidera desde 1989, quando a conquistou numa coligação encabeçada pelo centrista Mário Machado. Mas uma mistura de jactância com muita incompetência, desde os líderes da concelhia aos secretários de ilha, alguns dos quais optaram por paragens mais arejadas e pecuniosas, enquanto outros parecem agora enveredar por verdadeiras incursões kamikaze, feitas a título pessoal no campo adversário, até ao silêncio conspiratório do líder máximo, tudo contribui para que o PS se atire a um precipício eleitoral de difícil recuperação.

Sejamos claros: o líder do partido devia estar nos Açores a tempo inteiro e assumi-los como a sua prioridade. Devia, ele próprio, ser o candidato à principal câmara municipal da região.

Hostilizar Sónia Nicolau foi um erro. Oferecer-lhe o 2º lugar foi outro. Insistir em Isabel Rodrigues é um 3º erro. Não se compreende, aliás, como é que esta ainda se mantém na corrida, depois de ter sido publicamente menorizada pela sua própria secretária-coordenadora de ilha, que claramente não acredita nas hipóteses reais da sua candidata vencer esta eleição.

Neste momento, a única solução com dignidade para o PS-Açores é: (1) apoiar Sónia Nicolau. Esse, aliás, devia ser o caminho em todas as freguesias e concelhos das nove ilhas. Abrir o partido aos eleitores com humildade, proximidade e com candidatos reais, com efetiva presença e capacidade de trabalho no terreno; ou (2) sair da corrida, apelando aos seus militantes e simpatizantes para que colaborem num amplo movimento de cidadãos capaz de derrotar Pedro Nascimento Cabral que, enquanto isso, sorrindo impávido no conforto do seu gabinete aveludado, vai-se fazendo de morto como melhor forma de garantir a sua reeleição.