quarta-feira, 25 de junho de 2025

Speakers' Corner 38

A via da conciliação

No ano de 327 a.C., na antiga Báctria, hoje parte do Afeganistão, Alexandre, o Grande, desposou a bela Roxana, filha de um nobre persa. O gesto, mais do que político ou romântico, foi a afirmação de uma ideia poderosa: a de conciliação. Alexandre, educado por Aristóteles e considerado o maior estratega militar da história, não se limitou a conquistar territórios e a derrotar exércitos, procurou unir culturas, numa fusão entre múltiplas nações, línguas, etnias e raças, num império de simbiose, não de supremacia.

Dois mil e trezentos anos depois, o mundo parece ter esquecido a lição de Alexandre. A recente escalada de tensão no Médio Oriente, com o surpreendente, embora previsível, ataque aéreo americano ao Irão, utilizando, mais uma vez, as valências de gasolineira no centro do Atlântico da Base das Lajes, revela até que ponto a diplomacia e o diálogo cederam ao estrépito das bombas e à retórica da destruição.

O Ocidente olha para o Irão quase exclusivamente através do véu da teocracia islâmica xiita. Há, no entanto, um erro profundo nessa visão redutora e obscurecida. Ignoramos que o Irão não é apenas um regime, é uma civilização com mais de quatro milénios. Herdeira da antiga Pérsia, berço de avanços intelectuais, artísticos e políticos que moldaram muito do que hoje consideramos pilares da modernidade e da nossa própria civilização, desde a ideia de unidade política territorial à administração pública, da tolerância religiosa à poesia mística.

Reduzir esta complexidade à figura dos aiatolás ou a um inimigo geopolítico é não só injusto e limitado, é profundamente perigoso. Ao ignorarmos o valor histórico e cultural de um povo, abrimos caminho à sua desumanização. E esse é sempre o primeiro passo para a barbárie. Com a agravante de que, numa guerra pela superioridade, aqueles que não temem a morte serão os primeiros a prevalecer.

A atual política externa americana, marcada pelas decisões erráticas e egocêntricas de Trump, alimenta esta lógica maniqueísta e belicista. Desprezando o contexto, confundindo força com liderança, misturando castigo com solução, gerando apenas vazio. E é nesse vazio que se alimentam o ressentimento e o radicalismo, numa avalanche de consequências imprevisíveis.

O que fará a China? Fará cair a sua força militar sobre Taiwan? Putin terá aqui a porta aberta para acelerar ainda mais os seus intentos de domínio territorial sobre a Ucrânia e, quem sabe, sobre o Báltico? E como reagirão a Índia e o Paquistão, ambos potências nucleares? Está a Europa preparada para o recrudescer do horror do terrorismo? E o que fará o Irão, não hoje, mas no futuro?

No TikTok, imagens de rituais xiitas de homens a bater no peito em honra do martírio de Hussein Ibn Ali na batalha de Carbala, em 680 d.C., tornaram-se virais. Para o nosso olhar ocidental, é um espetáculo incompreensível. Mas para milhões de crentes, é a expressão de uma memória coletiva fundada na dor e na resistência, onde o conceito de sacrifício é o elemento fundacional da sua própria visão da vida. Não entender isso é não entender a alma da nação xiita e a identidade do atual Irão, país moldado por essa ideia de martírio. Combater essa visão com mísseis e bombas GBU-57 é como tentar apagar um fogo com gasolina.

O Ocidente, enquanto entidade política e civilizacional, baseada na democracia liberal, no primado da vida humana e nas liberdades individuais, não se deve vergar aos totalitarismos. Mas também não se pode impor ao resto do mundo pela via da destruição. Num tempo em que os líderes mundiais parecem obcecados com o poder e a conquista pela obliteração do outro, talvez valesse a pena lembrar que as civilizações não se constroem com mísseis, mas com ideias. O futuro ergue-se com palavras, não com bombas. Como Alexandre demonstrou ao unir-se a Roxana. E que a via da conciliação é o único caminho que pode evitar que o mundo, mais uma vez, tropece na sua própria arrogância.

 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Speakers' Corner 37

A Vertigem do Fim

Vivemos tempos perturbados. Um pouco por todo o mundo, a loucura impõe-se devastadoramente sobre a vida das pessoas. O ódio tomou conta dos areópagos políticos. O declínio moral, institucional e até humano parece ser o único caminho à nossa frente, como uma frenética avalanche desmoronando-se sobre a montanha das nossas vidas.

Abrimos os jornais, os poucos de nós que ainda os leem, ou percorremos mecanicamente os infinitos canais de notícias, e somos assoberbados por inacreditáveis parangonas, excitações várias, constantes alertas noticiosos e comentários facciosos, num interminável caleidoscópio de embriagada alucinação.

A Europa, outrora um projeto civilizacional de paz e prosperidade, submete-se agora ao desvario da economia de guerra. Passámos do pacote da PAC para o míssil PAC-3. Os discursos políticos fazem-se em torno do medo, da ameaça, da necessidade de se estar “preparado” para um inimigo imposto, mas nunca da urgência de se estar lúcido ou do imperativo de se ser justo.

Israel, sob a liderança de um governo extremista e ultraortodoxo, bombardeia a teocracia iraniana num conflito de consequências inimagináveis. O Médio Oriente volta a arder, como se alguma vez tivesse deixado de arder, e o mundo, que já deixou de se espantar, assiste em silêncio cínico ao genocídio e à obliteração cega e mútua de eternos e inquebrantáveis inimigos. E somos todos cúmplices nessa incapacidade de regressar à raiz da alma, como apelou Rumi.

Em Espanha, um dos últimos redutos da esquerda na Europa, Sánchez estremece com escândalos sucessivos que envolvem corrupção, misoginia e jogos de poder rasteiros. Uma democracia em erosão, onde as instituições vão perdendo credibilidade a cada nova gravação escondida que vem a público.

Por cá, em Portugal, a violência verbal saltou das redes sociais e dos discursos políticos para as ruas, transformando-se em violência real, palpável, física. Sob o disfarce do populismo, a intolerância fascista voltou a ganhar espaço e, o que é mais grave e paradoxal, aceitação. Relativiza-se o inaceitável, desculpam-se os que afrontam os direitos mais básicos, comparando o incomparável. E, no Brasil como cá, transforma-se o humor em crime, a sátira em insulto, a crítica em perseguição, em democracias corroídas pelo ácido do partidarismo.

Na América, outrora terra dos livres, desfilam paradas militares como nos regimes totalitários. Trump e Putin parecem hoje dois lados de uma mesma moeda, uma moeda cujo câmbio será sempre negativo. O sonho do Ocidente morreu. E talvez o mais inquietante seja justamente isso: o colapso da ideia de futuro. O cansaço do mundo é palpável, na linguagem e nos atos do dia a dia. A banalidade do mal, como assinalou de forma clarividente Hannah Arendt.

Na nossa pequenina realidade insular, percebemos agora, ou fingimos que só agora percebemos, que o Hospital Modular não passou de um esquema de contornos pouco claros, onde as decisões foram, no mínimo, erráticas, dúbias e precipitadas. A política tornou-se uma sucessão de gestos apressados e de anúncios vazios, feitos mais para encenação mediática do que para a resolução efetiva de problemas. A IA tomou conta das palavras, tal como o TikTok tomou conta das narrativas. Ao mesmo tempo, o drama subterrâneo das drogas sintéticas alastra pelas ruas, pelas casas, pelas famílias, como um vírus tóxico que se insinua na pele da sociedade.

Até o tempo parece conspirar com este mal-estar difuso: os nevoeiros de São João molham-nos até à alma, com a sua morrinha húmida e silenciosa. Há um clima de fim que paira no ar, um cansaço acumulado, um suspiro abafado, uma sensação de que tudo o que poderia ser feito já não será. Vivemos cercados por ruínas, algumas visíveis, outras escuras e interiores. O que nos resta é não perder a capacidade de espanto. A pulsão de resistência.

Talvez este não seja ainda o fim. Mas é, indiscutivelmente, o início dessa vertigem.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Speakers' Corner 36

História de um país sem rumo

Quem calcorreia hoje as ruas de Ponta Delgada, descendo da Machado dos Santos à António José d’Almeida, rumo à Matriz, dificilmente saberá quem foram esses expoentes do republicanismo que dão nome a duas das mais importantes artérias do nosso burgo. Machado Santos, vice-almirante, herói do 5 de Outubro, foi um perpétuo revolucionário, tido como o “pai da República”. António José d’Almeida, médico e opositor da monarquia, ficou conhecido por um manifesto publicado em Coimbra, na sua juventude, intitulado Bragança, o Último, que o levou à prisão e ao estatuto de herói republicano. Mais tarde viria a ser Presidente da República, entre 1919 e 1923. Ambos maçons, como muitos republicanos da época, simbolizam o espírito de um tempo dividido entre a agitação contestatária e a aspiração progressista. A Primeira República foi um imensamente agitado período de transição entre uma monarquia de setecentos anos e uma ditadura, que duraria quarenta e oito, e que pretendia vir repor uma certa organização e esteio a um país desgovernado. Nesses curtos 16 anos, Portugal teve 45 governos e 8 presidentes.

Se um futuro historiador olhar o país daqui a 100 anos, reconhecerá certamente as mesmas tendências, as mesmas aspirações populares incumpridas e os desmandos políticos de elites conspiracionistas. Provavelmente calcorreará ruas com nomes como Costa ou Montenegro, nomes que, como tantos outros, cairão também no esquecimento. A história, como dizia Mark Twain, não se repete, mas rima. E há, neste tempo que vivemos, uma impressão forte de fim de regime. Cinquenta anos após Abril, o país parece soçobrar sob o peso do que ficou por cumprir.

Dos famosos três D’s que Medeiros Ferreira levou ao Congresso Democrático de Aveiro, em 1973, e que Melo Antunes transportaria para o programa do MFA, a descolonização redundou num desastre, a democratização sucumbiu ao poder do capitalismo partidário, e o desenvolvimento coloca Portugal entre os países da UE com maior desigualdade na distribuição da riqueza. Só Bulgária, Roménia, Letónia e Lituânia nos ultrapassam nesse triste ranking do índice de Gini.

Se há ilação a tirar das últimas eleições, é a de que existe um descontentamento generalizado no país, um povo descrente e cansado e uma classe política incapaz de se regenerar e de incutir esperança nos eleitores. O mesmo historiador futuro, ou uma cartomante de agora, dirá, e com razão, que o momento é propício a sebastianismos, a líderes salvíficos que, acoberto de um manto de nada, como um nevoeiro diáfano, se apresentam como portadores da ordem, do bom-senso e do progresso, mesmo que falso e mentiroso e empacotado em insultos e alarvidades.

Quando o centro ruir, a democracia ruirá com ele. Muito provavelmente, o país elegerá um ex-almirante de fama vacinal para o cargo de mais alto magistrado da Nação. Um primeiro-ministro pouco transparente e de passado duvidoso cairá em desgraça num escândalo judicial envolvendo empresas e favores. Montenegro cairá, e o PPD cairá com ele. E, depois disso, um líder populista e demagogo poderá ascender ao poder, erguido em promessas doces e inebriantes de autoridade, limpeza e patriotismo. O velho e reconhecido “pôr ordem nisto”, ou o salazarento “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. A direita será toda ela populista, com tudo o que isso traz de reacionarismo e nacionalismo bacoco. O Almirante, então, dirá que o país precisa de estabilidade e dará o seu magnânimo aval a uma coligação entre Ventura e um qualquer Passos Coelho da vida. A esquerda, órfã e desorientada, será remetida a uma oposição triste e prolongada. E Portugal mergulhará, de novo, numa bem-comportada e resignada noite autoritária com o Almirante ao leme, de fato assertoado e barba grisalha, sabe-se lá com que rumo.

Oxalá me engane. Porque se não irei acabar os meus dias na frente de um qualquer pelotão de fuzilamento por delito de opinião e tráfico de liberdade de expressão.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Speakers' Corner 35

Crónica de um desastre anunciado

À hora em que escrevo, estes são os factos conhecidos: Sónia Nicolau, ex-militante socialista e candidata independente à Câmara Municipal de Ponta Delgada, terá sido contactada pela vice-presidente do Partido Socialista dos Açores e secretária-coordenadora do partido em São Miguel, Cristina Calisto, com uma proposta de coligação liderada pelo PS, na qual a candidata independente ocuparia o segundo lugar.

De acordo com um comunicado, Sónia Nicolau submeteu essa proposta à consideração dos seus apoiantes, que a rejeitaram por unanimidade.

Em declarações à Antena 1 Açores, Cristina Calisto assume o contacto, mas nega tratar-se de uma proposta formal de coligação, muito menos em nome do partido, afirmando que se tratou apenas de uma manobra exploratória, feita a título pessoal e individual, para aferir da sensibilidade de Sónia Nicolau perante a eventualidade de uma coligação.

Após um processo muito atabalhoado de escolha de candidatos, o PS parece incapaz de se alinhar numa estratégia coerente, ou sequer num rumo definido. Primeiro, geriu desastrosamente o dossier Sónia Nicolau, hostilizando e até vilipendiando uma militante e ex-deputada, de forma imprópria para um partido livre e democrático. Depois, Isabel Rodrigues, que no papel parecia ser uma escolha qualificada e aceitável, revelou-se um nado-morto, ausente, titubeante, dir-se-ia mesmo, desistente.

Depois da hecatombe eleitoral de maio último, o PS corre para apanhar os cacos de um partido em estado catatónico, sob ameaça de uma eutanásia eleitoral nas autárquicas que se aproximam. Mas nem o desespero de quem vê chegar o fim de uma era explica tantos erros, tanta incapacidade estratégica e tamanha inabilidade política.

Já o escrevi antes: Pedro Nascimento Cabral é um mau presidente. Errático, autoritário, sem visão. Bastaria a gestão do Mercado da Graça para lhe negar a reeleição. Mas há mais. A candidatura a Capital Europeia da Cultura, o seu triste desfecho, e a atual designação como Capital Nacional da Cultura 2026, mergulhada numa deriva populista, sem programa e à distância, a meros seis meses do início, são igualmente reveladores de um mandato vazio e desperdiçado.

Este era o momento ideal para o PS reconquistar a Câmara de Ponta Delgada, que não lidera desde 1989, quando a conquistou numa coligação encabeçada pelo centrista Mário Machado. Mas uma mistura de jactância com muita incompetência, desde os líderes da concelhia aos secretários de ilha, alguns dos quais optaram por paragens mais arejadas e pecuniosas, enquanto outros parecem agora enveredar por verdadeiras incursões kamikaze, feitas a título pessoal no campo adversário, até ao silêncio conspiratório do líder máximo, tudo contribui para que o PS se atire a um precipício eleitoral de difícil recuperação.

Sejamos claros: o líder do partido devia estar nos Açores a tempo inteiro e assumi-los como a sua prioridade. Devia, ele próprio, ser o candidato à principal câmara municipal da região.

Hostilizar Sónia Nicolau foi um erro. Oferecer-lhe o 2º lugar foi outro. Insistir em Isabel Rodrigues é um 3º erro. Não se compreende, aliás, como é que esta ainda se mantém na corrida, depois de ter sido publicamente menorizada pela sua própria secretária-coordenadora de ilha, que claramente não acredita nas hipóteses reais da sua candidata vencer esta eleição.

Neste momento, a única solução com dignidade para o PS-Açores é: (1) apoiar Sónia Nicolau. Esse, aliás, devia ser o caminho em todas as freguesias e concelhos das nove ilhas. Abrir o partido aos eleitores com humildade, proximidade e com candidatos reais, com efetiva presença e capacidade de trabalho no terreno; ou (2) sair da corrida, apelando aos seus militantes e simpatizantes para que colaborem num amplo movimento de cidadãos capaz de derrotar Pedro Nascimento Cabral que, enquanto isso, sorrindo impávido no conforto do seu gabinete aveludado, vai-se fazendo de morto como melhor forma de garantir a sua reeleição.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Speakers' Corner 34

A gloriosa derrota

O Benfica sofreu, domingo passado, uma derrota épica. Uma daquelas derrotas de proporções bíblicas, que ficam para a história, que atravessam gerações e se eternizam na memória coletiva dos que amam o clube e choram por aquela camisola. No final do jogo, as lágrimas de Di María eram as lágrimas de todos nós, adeptos sofredores, ajoelhados no chão em frente aos sofás, partilhando a mesma mágoa, a mesma dor funda e inexplicável do desaire final, na exaltação plena do falhanço absoluto.

De todos os desportos, o futebol é o que mais espelha a vida, como no amor ou na guerra, nele convivem, lado a lado, a glória mais suprema e a ruína mais devastadora. E talvez seja o único capaz de conferir à derrota um valor redentor, uma dimensão única de ensinamento e catarse coletiva. Perder, sobretudo perder daquela forma, dramática e castigadora, é uma experiência misteriosamente profunda e transformadora.

No futebol nada acontece por acaso e um jogo como a final da Taça, tem um histórico por trás, é o último jogo da época, já depois do campeonato resolvido, e este ano, essa resolução tinha ela própria uma história, um drama subjacente, como numa peça shakespeariana, em que múltiplas camadas de emoções e personalidades se imiscuem no tecido da trama trazendo consigo um peso trágico.

Três semanas antes, jogara-se o chamado “jogo do século”, um Benfica vs. Sporting onde o empate soube ao gosto amargo da cicuta. Na última jornada, os encarnados caíram na Pedreira e o Sporting impôs-se frente ao Guimarães. O campeonato ficou entregue, e os benfiquistas, com a resignação dos condenados, viram a sua equipa morrer na praia, como uma onda que se desfaz em som e espuma sobre a areia fina. O campeonato foi, este ano, um sonho recorrente, feito com frémitos equivalentes de êxtase e de pesadelo.

Ali chegados, na tarde quente do Jamor, a final da Taça parecia a última oportunidade de redenção para este Benfica. Uma réstia de esperança para uma equipa intimamente vencida. Aursnes e Di María, os dois jogadores mais marcantes da equipa, um pela magia, o outro pela sua ubíqua versatilidade, começavam no banco. No rosto de ambos adivinhava-se a gravidade do instante, no seu semblante pesado esse sentimento de impossibilidade perante o jogo e o adversário.

Mas o Benfica agigantou-se. Subjugou o campeão nacional com um futebol assertivo e inteligente, dominou o meio-campo, recuperou bolas, impôs ritmo. Ao intervalo, liderava no campeonato da honra, mesmo, como todos viram, contra um adversário que jogava com o reforço escondido do vídeo-árbitro.

No início da segunda parte, chegou o golo. Um remate impossível de Kökçü, de fora da área, a bola a beijar levemente a relva antes de entrar, imparável, no ângulo inferior junto ao poste. Um golo sublime. Logo a seguir, Bruma fez o segundo, anulado por interpretativa falta de Carreras no início da jogada. E depois veio a meia hora de sofrimento, com Bruno Lage a tentar segurar o magro resultado e o Sporting a sobrelevar-se.

Até que, Renato Sanches, o mais controverso dos jogadores deste plantel, numa corrida desesperada contra um inultrapassável Gyökeres faz penálti no minuto 90+10. Nesse instante, as luzes apagaram e a história do jogo ficou escrita. Já não interessavam os erros do árbitro, as agressões absurdas, que um vídeo-árbitro que tudo viu aqui deixou escapar, os golos, as substituições desesperadas, os minutos passavam pesados e castigadores sobre uma equipa em drama consigo própria e um adversário que mesmo sendo menor se suplantou como poucas vezes nas últimas décadas, numa vitória que ficará, também, para a sua história.

Mas, como sempre sucede no futebol, as derrotas são tão importantes como as vitórias. As derrotas são a argamassa que sustenta os pilares da glória e é das lágrimas, como as de Di Maria, que se alimenta o sonho que faz um clube, como o Benfica, ser eterno.

P.S. infelizmente, a política não é como o futebol. Ou será?

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Speakers' Corner 33

Combater o Chega, ouvir as pessoas

Os resultados de domingo foram um abalo telúrico na nossa democracia, que se vê a braços com um tsunami populista e reacionário como nunca se tinha visto em 50 anos. De facto, de todas as consequências do escrutínio, a avalanche do Chega, transformado na terceira, ou possivelmente na segunda força política nacional (à hora em que escrevo, faltam apurar os deputados da emigração, que podem dar mais dois mandatos ao Chega…), é o principal facto político destas eleições, mais até do que a carnificina no PS, embora ambas estejam, creio eu, relacionadas. Para lá do tripartidarismo, do populismo, do spinumvivismo e da derrota da esquerda, o que me parece mais relevante realçar nestas eleições é a vitória do antissistemismo.

Arrisco um exemplo local para avançar uma explicação para este crescimento assustador do Chega, que mais não é do que a consubstanciação do voto antissistema. Nos últimos dias, tenho participado em diversas reuniões sobre a questão do Ilhéu. Numa delas, com responsáveis locais dos dois principais partidos, levantava-se a questão do aproveitamento eleitoral do fecho do Ilhéu a banhos. Do lado do PSD, parecia medrar a ideia de que o partido teria vantagem eleitoral autárquica com o Ilhéu fechado, como forma de capitalizar na campanha. Do lado do PS, agitava-se a narrativa de que a culpa do fecho do Ilhéu era do Governo, logo, seria o PSD a ser penalizado.

A uns e a outros tentei, sem sucesso, alertar que o único partido que poderia tirar proveito político de um escândalo como o fecho do Ilhéu era o Chega, devido ao descrédito das pessoas face a dois partidos com responsabilidades repartidas e incapazes de resolver um problema que é de todos. Como era expectável, o Chega ganhou em Vila Franca. A principal razão para o crescimento do Chega é o cansaço, a zanga dos eleitores com os dois partidos que construíram a democracia - PS e PSD - e que, na mente das pessoas, são os verdadeiros responsáveis por aquilo que sentem ser o estado calamitoso do país, sem esperança, sem oportunidades e sem futuro. E é bem provável que as pessoas tenham razão. Aqui chegados (perdoem o trocadilho) o combate ao Chega faz-se na refundação democrática dos partidos do centro e, neste caso em especial, do PS, sob o risco de se matar a esquerda moderada em Portugal.

Menos de três anos depois de uma maioria absoluta com mais de 2 milhões de votos, o PS caiu para 1 milhão e quatrocentos mil votos e apenas 58 deputados. Nos Açores, o cenário é tão ou mais preocupante. De 4 deputados passou para apenas 1. Com a agravante de ficar praticamente empatado com o Chega no círculo regional e escandalosamente ultrapassado na ilha de São Miguel. Estes são resultados dos quais o partido não pode fugir. É uma mensagem claríssima que lhe está a ser dada pelos eleitores, e nem toda a falsa coragem do mundo pode fazer esquecer este fortíssimo cartão vermelho. A nível nacional, o partido soube reconhecer esta hecatombe; a nível regional, e citando as palavras de Sérgio Sousa Pinto na própria noite das eleições: se o PS não acabar com esta direção, esta direção acaba com o partido.

Se tivermos de encontrar uma justificação para estes resultados, ela está na falta de ligação entre os eleitores e o PS e o PSD. O Chega é um voto de protesto contra dois partidos que parecem ter capturado a democracia, colocando-a ao serviço dos seus interesses pessoais e não do povo ou do país. Não é à toa que a AD não teve maioria, que foi o Chega que o povo elegeu para bloquear a governação e será no Chega que votará quando este PSD voltar a falhar com o país. Se prosseguirmos neste caminho, em breve o partido do protesto tornar-se-á no partido de governo, levado em ombros por todos aqueles que se recusam a reconhecer as suas responsabilidades nesta deriva dos eleitores do centro rumo ao precipício populista e ao caos que nos olha desde o fundo desse abismo.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Speakers' Corner 32

Democracia Evolutiva

Este domingo que passou, exerci, pela primeira vez naquela que é já uma relativamente longa carreira de eleitor, o direito de voto antecipado. Por motivos literários, não estarei na ilha no próximo domingo, pelo que recorri a esta nova modalidade de acesso ao voto, num processo eletronicamente escorreito de inscrição e, como pude constatar pela fila existente na Câmara Municipal de Ponta Delgada, com uma entusiasmante adesão popular.

Das muitas áreas em que a nossa democracia precisa urgentemente de evoluir, facilitar o acesso ao voto é uma das mais prementes, alargando prazos e métodos, como é o caso do voto antecipado. Cinquenta anos depois das primeiras eleições livres, em sufrágio universal, e quando o país se vê mergulhado num labirinto democrático, incapaz de gerar estabilidade ou alternativa, melhorar as formas de relação dos eleitores com o voto é uma forma não só de reduzir a abstenção e comprometer os eleitores com as suas escolhas, mas, acima de tudo, de fazer evoluir e melhorar a própria democracia. A natureza da crise de representação a que assistimos não tem apenas que ver com os partidos ou as suas lideranças, mas também com a natureza do próprio sistema eleitoral e as suas falhas e omissões. Discuti-las e repensá-las devia ser um desígnio prioritário nestes cinquenta anos de Abril.

A representatividade do método D’Hondt. Os círculos eleitorais e a necessidade de um círculo de compensação nacional. A abstenção e as formas de a mitigar. Listas fechadas versus listas abertas. Listas de cidadãos. Partidos regionais. Sistemas eleitorais proporcionais, maioritários ou mistos. Todas estas questões deviam estar permanentemente em cima da mesa, como sinais de uma permanente e imperiosa atualização democrática. Diga-se, em abono da verdade, que tanto o BE como a IL têm propostas sobre estes temas, mas, como sempre, são PS e PSD os mais avessos à mudança e ao evoluir da nossa democracia.

Por princípio, sou intrinsecamente contra proibições e, como tal, também contra obrigações. O voto é um dever e não uma obrigação, e o verdadeiro teste democrático é verificar se os partidos e os candidatos têm, ou não, capacidade de mobilizar os cidadãos. Por outro lado, numa democracia evoluída, a opção pela abstenção é sempre igualmente legítima. Mas uma das formas de potenciar o voto seria a repetição dos atos eleitorais em círculos onde a abstenção for superior a 50%, instigando-se, assim, eleitos e eleitores a um esforço mútuo de maior participação e mobilização. Outra das reformas estruturais fundamentais seria a legalização de listas de cidadãos para os parlamentos, retirando-se aos politburos partidários o monopólio da propositura de candidatos. Este seria um passo decisivo em direção à pluralidade e à transparência, criando-se uma maior e melhor ligação entre eleitos e eleitores.

No atual momento da nossa maturação democrática, caracterizado por uma cada vez maior pluralidade de propostas políticas e partidárias, a criação de um círculo de compensação, que corrija as arbitrariedades e injustiças, nomeadamente as discrepâncias regionais entre círculos eleitorais inerentes à aplicação do método D’Hondt (um voto em Lisboa não é o mesmo que um voto nos Açores ou em Portalegre, por exemplo), torna-se também fundamental para dar a cada cidadão não só um voto, mas um voto verdadeiramente válido, e não desperdiçar milhares de votos, como atualmente acontece. Para que se perceba, nas últimas eleições legislativas, num universo de quase seis milhões e meio de votos expressos, 1.238.760 votos foram literalmente deitados ao lixo, entre votos nos pequenos partidos e votos insuficientes para eleger mandatos adicionais. Mais votos do que o total dos votantes do Chega, que elegeu 50 deputados. Mais de um milhão e duzentos votos que, na prática, não contribuíram para eleger ninguém. São números que, no mínimo, deveriam fazer pensar e, principalmente, fazer evoluir a nossa democracia.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Speakers' Corner 31

Da subversão da democracia

Este domingo marcou oficialmente o início de mais uma campanha eleitoral. No entanto, a sensação que fica é a de que vivemos, há décadas, numa espécie de Matrix político, um ciclo permanente de campanhas, caravanas, comícios, debates, cartazes, slogans e outros infindáveis clones de um qualquer Agent Smith eleitoral. Num nunca mais acabar de fórmulas repetidas, os partidos procuram capturar e anestesiar os pobres eleitores, oferecendo-lhes, complacentemente, o pequeno comprimido azul da resignação.

No seu célebre “Discurso de Despedida”, verdadeira peça de filosofia política ainda hoje impressionantemente atual, George Washington deixou um aviso de notável lucidez e presciência. Ao refletir sobre os partidos políticos, num olhar crítico, deixou o seguinte alerta: “Por mais que [os partidos políticos] possam de vez em quando responder aos fins populares, é provável que, com o passar do tempo e das coisas, se tornem motores potentes, através dos quais homens astutos, ambiciosos e sem princípios serão capazes de subverter o poder do povo e usurpar para si as rédeas do governo, destruindo posteriormente os próprios motores que os elevaram ao domínio injusto.”

Este aviso torna-se especialmente pertinente no atual contexto político nacional, em que o país é empurrado novamente para eleições por exclusiva responsabilidade de um líder que colocou a sua sobrevivência política acima dos interesses do partido e, mais grave ainda, acima dos interesses do próprio país. No meio do bruaá da campanha, importa recordar a razão pela qual somos chamados às urnas. Não está em causa a governabilidade, nem sequer uma disputa ideológica séria. O que está em causa é a honorabilidade de um candidato a Primeiro-Ministro que, tendo falhado eticamente, pretende agora ver a sua (má) conduta legitimada pelo voto popular, não hesitando para isso em fazer refém o seu próprio partido e manipular o eleitorado em nome da sua manutenção no poder.

Independentemente do juízo que cada um possa fazer sobre essa conduta, ou da sua relevância para o futuro da governação (até porque uma eventual vitória da AD conduzirá, inevitavelmente, a novas eleições em breve), a subversão dos valores éticos e democráticos levada a cabo para salvar a pele política de Montenegro constitui um pecado capital. E não pode, sob pena de destruirmos os alicerces da própria democracia, passar impune.

A menos de quinze dias das eleições, é fundamental percebermos que o que está verdadeiramente em jogo no próximo dia 18 não são apenas visões distintas para o futuro do país. Está em causa, sobretudo, a saúde moral da nossa já frágil democracia, agora posta em xeque por um candidato que tenta transformar os eleitores em júris do seu (fraco) juízo ético.

Estas eleições são também particularmente relevantes a nível regional, em especial para o líder da oposição, que enfrenta aqui um inesperado teste à sua liderança. Após um conturbado processo de definição das listas autárquicas — veja-se o caso de Ponta Delgada —, o resultado eleitoral poderá confrontar o Partido Socialista com a necessidade inadiável de repensar o seu rumo, por mais que o atual líder tente eximir-se desta imprescindível reflexão.

Isto porque, ao contrário do princípio aplicado a nível nacional, afastando os cabeças de lista autárquicos das listas à Assembleia da República, nos Açores é precisamente o candidato a presidente do Governo Regional quem surge como cabeça de lista. Uma eventual penalização por parte do eleitorado dessa decisão, ainda mais por que justificada com uma alegada influência pessoal na capital, impõe necessariamente uma avaliação, tanto da parte do próprio candidato, como dos restantes órgãos do partido. Caso contrário, estaríamos perante mais um exemplo dessa subversão que Washington tão lucidamente antecipou. E, quando o que está em causa é o futuro da democracia e do país, ou, neste caso, da região, optar pela complacência do statu quo poderá ser fatal.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Speakers' Corner 30

O grande apagão e a globalização do lucro

Amanhã é Dia do Trabalhador. A data, instituída no âmbito da segunda Internacional Socialista, assinala a Greve de Chicago, quando, no dia 1 de maio de 1886, um grupo de trabalhadores de diferentes fábricas dessa cidade americana se uniram numa grande greve geral para reivindicar melhores condições de trabalho, em especial a segurança e a redução da jornada de trabalho que, na altura, era de 17 horas diárias. Organizadas durante vários dias, as manifestações viriam a descambar em confrontos. No dia 3, os grevistas da McCormick Company, reunidos em protesto na Haymarket Square, entraram em luta com a polícia e os “detetives” da Agência Pinkerton, contratados pelos patrões para aplacar os grevistas, resultando em dois mortos, despoletando uma sequência de dias de conflitos, entre bombas, motins e manifestações, terminando num processo judicial que levaria à condenação à morte de quatro dirigentes anarquistas. Uma luta que haveria de marcar o movimento sindical mundial nas décadas seguintes.

Em 1889, no congresso da segunda Internacional Socialista, criada por Friedrich Engels, o 1º de Maio foi instituído como Dia Mundial do Trabalhador e, também, o 8 de Março, proposto como Dia Internacional da Mulher, numa afirmação da verdadeira fraternidade dos movimentos progressistas a nível global. É importante notar, dentro do contexto histórico do final do sec. XIX e do início do sec. XX, onde o choque entre impérios dominava a política mundial, que foi uma organização de trabalhadores a imaginar e propor uma grande união internacional, que extravasava as fronteiras nacionais ou patrióticas, fundamentada nos valores humanistas e representando os interesses de todos os trabalhadores do mundo. Isto muito antes do Tratado das Nações, que só viria a unir o mundo em 1945, no rescaldo do extermínio da Segunda Guerra Mundial.

Ao longo das décadas seguintes e até aos dias de hoje, no permanente conflito entre forças conservadoras e progressistas, na velha luta entre capital e trabalho, não deixa de ser irónico que, no contexto atual, tenha sido a globalização do lucro a estabelecer-se como hegemónica a nível mundial e a luta dos trabalhadores seja vista hoje como um movimento anacrónico e esquecido no pó dos cadafalsos da história. Hoje, é a própria Internacional Socialista, cujo hino apelava a uma “terra sem amos”, que vive amordaçada no peso da ditadura do capital, capturados os partidos pela opressão do financiamento. E são organizações dúbias como o World Economic Forum, do inefável Sr. Schwab, que comandam as políticas internacionais e as interdependências entre países. Também não deixa de ser simbólico que o novo líder desta organização de representantes não eleitos dos maiores interesses económicos globais seja um senhor chamado Peter Brabeck-Letmathe, ex-CEO da Nestlé, que ficou famoso por sugerir que a água não era um direito universal, mas antes uma commodity, privatizável e comerciável, na incessante prossecução do lucro das grandes corporações internacionais. A globalização e o internacionalismo, alicerçados no primado da pessoa humana e nos direitos dos cidadãos, cujos valores foram reacendidos pelas lutas das duas internacionais socialistas, foram vencidos pela internacionalização do lucro e da avareza do comércio global. O recente apagão ibérico, a que assistimos não sem alguma dose de choque e pavor, foi disso um bom exemplo, com um bem essencial à vida contemporânea, a energia elétrica, refém dos interesses corporativos de uma empresa detida a mais de 80% por grandes multinacionais estrangeiras e operando sem controlo, ou segurança, no liberalizado mercado ibérico da energia.

Einstein, ele próprio um socialista, dizia que três grandes forças dominavam o mundo: a estupidez, o medo e a ganância. A realidade deu-lhe mais uma vez razão - na estupidez, no medo e, principalmente, na insaciável ganância do capitalismo global.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A Sociedade Terra Nostra e os seus promotores

Deu nota recente a comunicação social do nonagésimo quinto aniversário da abertura do Hotel Terra Nostra. Na informação veiculada refere-se que o Hotel Terra Nostra foi “idealizado”, cito, por Vasco Bensaude, e que, o mesmo “Naquela freguesia remota, em 1935, […] fez nascer um hotel de luxo”. Longe de querer rebater tais informações ou sequer contestar o relevante papel de Vasco Bensaude no desenvolvimento da ilha e da região e, em particular, do turismo açoriano, a factualidade do expresso é equivoca e merecedora de esclarecimento.

A constituição da Sociedade Terra Nostra, promotora do turismo na ilha de São Miguel, data de 1933, tendo como sócios fundadores o Dr. Lúcio Agnelo Casimiro (1879-1951), o Dr. Augusto Rebelo Arruda (1888-1964) e o Dr. Francisco Bicudo de Medeiros (1893-1972), que, unidos na sua visão de uma ilha mais próspera e moderna, tanto económica como socialmente, constituíram essa Sociedade, já com os objetivos claros de tornar o vale das Furnas num centro turístico local e, assim, projetar a ilha de São Miguel nacional e internacionalmente.

É disso prova indesmentível a reabertura do Casino das Furnas, em Agosto de 1933, e a grande Exposição Comercial, Industrial e Agrícola, aí realizada em Setembro do mesmo ano, da qual a imprensa coeva deu ampla nota, e cujo “week end”, promovido pela Sociedade Terra Nostra, com jantares, bailes e ofertas exclusivas de alojamento, no então Hotel Atlântico, que ficou conhecida como a “semana dos nove dias”, foi um pioneiríssimo evento de promoção das Furnas e da Ilha de São Miguel enquanto potenciais destinos turísticos.

Ainda no final de 1933, os sócios fundadores abrem à subscrição pública, na ordem mínima dos 1.000$00, as quotas da empresa, não só como forma de angariar verbas para as suas iniciativas e investimentos futuros, mas como forma de galvanizar a sociedade micaelense para as oportunidades desta nova e promissora indústria. Data dessa altura a entrada de Albano da Ponte, Francisco Faria e Maia e Luís Bernardo Athayde no capital da Sociedade, importantes figuras da comunidade micaelense de então que, com a sua visão e cultura, muito contribuíram para o engrandecimento da empresa.

Desde a sua fundação, que a Sociedade Terra Nostra pretendia concretizar relevantes investimentos, não só na promoção turística da ilha de São Miguel, mas, também, na infraestruturação da sua oferta turística. Como o “Bureau de Turismo”, a Pensão Terra Nostra e a Casa Regional, a reabilitação do Hotel Atlântico em Hotel Terra Nostra, em conjunto com a aquisição do Parque Terra Nostra, antigo Jardim do Tanque do Marquês da Praia e Monforte, e a sua ligação ao Casino e, mesmo, a construção do Campo de Golfe, na Achada das Furnas, cujo projeto fora encomendado ao reputado arquiteto escocês Mackensie Ross.

É a ambição e a grandeza de tais investimentos que leva às negociações entre a Sociedade Terra Nostra, nomeadamente do seu sócio fundador Augusto Arruda, com Vasco Bensaude, que tinham já uma relação antiga como empreendedores e de colaboração mútua e de amizade, para a entrada deste último como investidor e sócio na Sociedade Terra Nostra. Desiderato que se viria a formalizar em novembro de 1933.

Nada, do anteriormente exposto, minimiza ou contraria a importância de Vasco Bensaude como investidor e empreendedor no desenvolvimento da Sociedade Terra Nostra e, consequentemente, no desenvolvimento da indústria do turismo nas Furnas, em São Miguel ou nos Açores. Mas, representaria uma injustiça histórica omitir o papel fundamental de alguém como Augusto Arruda, político, advogado e empresário, fundador também da SATA, na constituição, idealização e promoção da Sociedade Terra Nostra, em si, e dos seus mais visionários e significativos projetos, como são o caso do Hotel Terra Nostra das Furnas ou do Hotel Terra Nostra de Santa Maria, ou outras iniciativas que, ao longos das décadas subsequentes, cimentaram a região como destino turístico de excelência no imaginário nacional e internacional.

Por último, importa também destacar a instrumental participação do então jovem artista Manuel António Vasconcelos que, com a sua visão modernista e experiência dos maiores centros urbanos continentais, como Paris e Bruxelas, imprimiu aos investimentos da Sociedade Terra Nostra, o seu visual característico, marcado pela estética art déco, e que cimentaram definitivamente o sucesso e a relevância desses mesmos empreendimentos, até aos dias de hoje.

Endereçando as devidas felicitações, e votos de sucessos futuros, ao Grupo Bensaude, não poderia, no entanto, em boa consciência, deixar que tão relevantes omissões fossem passadas em claro quanto ao nascimento e desenvolvimento da Sociedade Terra Nostra, enquanto parte integrante, não só da história de um grupo económico específico e dos muitos que para tal contribuíram, mas como parte essencial da nossa história comum como comunidade, como ilha e como região.

Pedro Arruda, Vila Franca do Campo, 17 de Abril de 2025.

 

Speakers' Corner 29

Abril e a exaltação do afeto

Resisto a escrever sobre o Papa. Não tenho fé, não sou crente, uma estante alta e gasta de pensamento separa-me da sua figura. No entanto, consigo reconhecer-lhe a inteligência e o carisma. O culto do afeto, a peculiaridade do humor e uma omnipresente preocupação pela fraternidade, que fazia de Bergoglio, fã confesso do San Lorenzo, o clube do Bairro de Boedo, em Buenos Aires, essencialmente um Homem e muito mais do que o representante de Deus na Terra. Este Papa era um agente da Igualdade e da Fraternidade entre os homens, valores que, esses sim, sou capaz de compreender, não só com a luz da razão, mas, também, com as emoções de um coração que sente.

Neste tempo de desagregação, em que um pressentimento de fim emana pelo ar da história, contaminando com a premonição da decadência e a previsão do desastre, o desenrolar dos acontecimentos humanos, como se toda a nossa civilização se preparasse para colapsar, líderes como Jorge Bergoglio, mesmo na Igreja Católica, uma instituição com mais de dois mil anos de contradições, são uma réstia de esperança num mundo em erupção negativa, afundando-se sob o peso da sua própria autodestruição. Talvez pressentindo esse simbolismo é que escolheu chamar-se Francisco, como São Francisco de Assis, que amou toda a Criação e a quem Dante apelidou de a “luz que brilhou sobe o mundo”.

Bergoglio trazia consigo, no fundo, essa ligação premente e efetiva ao humano, às fragilidades e às perplexidades da vida, com as suas naturais incongruências e debilidades. Os pobres, os incompreendidos, os que são diferentes, os que fogem, os que erram e os que são selvaticamente oprimidos pela violência incontida da guerra, do capitalismo selvagem ou da pura e simples falta de empatia contemporânea. Esse, talvez, seja o seu maior ensinamento – a mão que busca o outro, que ampara e oferece o afeto.

Na próxima sexta-feira assinalam-se os 51 anos do 25 de Abril, a Revolução dos Cravos, que procurou trazer a paz e a liberdade, a democracia e a prosperidade, a um país refém de quarenta e dois anos de uma ditadura do Estado Novo, em guerra consigo mesmo e ostracizado aos olhos do mundo. Abril era, em muitos aspetos, essa promessa de empatia, de respeito pelas liberdades, direitos e garantias dos cidadãos, iguais perante a lei e o Estado. Cinquenta e um anos depois perguntamo-nos se se cumpriu Abril? Se logramos alcançar essa sociedade justa e equitativa? Que criasse oportunidades e riqueza, que fosse redistributiva e equilibrada, que mitigasse a pobreza, não acabando com os ricos, mas acabando com os pobres, como assinalou Olof Palm?

De certa forma, olhando hoje o país, há uma sensação de derrota, de algo que falhou, tal como, de certa forma, falharam as próprias celebrações dos 50 anos de Abril, mais ou menos dispersas e envergonhadas, incapazes de galvanizar o país na exaltação dos seus valores. O país falhou na justiça, falhou na prosperidade, falhou no respeito e na equidade. E falhou, essencialmente, na assunção da responsabilidade política. E é isso que explica os Montenegros e os Escárias da vida. É isso que alimenta os Venturas e os Almirantes, como aves de rapina sobrevoando cadáveres, à espera de se lambuzarem na necrose da nossa débil democracia com as suas sombras de renovados autoritarismos pairando sobre o nosso futuro.

Abril fez-se para acabar com a guerra, com os privilégios e os unanimismos. Hoje, cinquenta anos passados, temos um candidato a presidente da república que despiu a farda, mas incentiva a militarização do país e que anseia por uma nova ordem de resignada complacência. Temos uma nova casta de privilegiados políticos que se julgam acima da lei e que usam a própria democracia para legitimar os seus desmandos éticos. E a censura e o pensamento único deram lugar à opressão mediática do sensacionalismo, do unanimismo do politicamente correto e essa ensurdecedora zoeira do caos televisivo da excessiva polarização e que saliva na ausência de afeto.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Speakers' Corner 28

O Território do Vazio

Nemésio, na sua busca pela açorianidade, identificou três tipos de açorianos – o picaroto, o terceirense e o micaelense. Sobre este último, pintou-o segurando o cabo da enxada e lavrando a terra “já penetrável ao tubérculo”. Nesta identificação telúrica das gentes açorianas há uma espécie de paradoxo insular, rodeado de mar por todos os lados o açoriano, em particular o micaelense, vira as costas ao oceano e faz-se senhor da terra, enraizando-se cada vez mais no interior da ilha e olhando o mar com distância e, muitas das vezes, temor.

A ligação do açoriano com o mar foi sempre relativamente ambígua. A condição insular obriga a um relacionamento estreito com o oceano, mas este mar, o inclemente Atlântico, onde nos situamos, castiga e enclausura. Nos Açores, posto de abastecimento nos cruzamentos entre oceanos e continentes, o mar foi sempre território de medos e angústias. De lá vinham os piratas e as tempestades, cemitério vivo de batalhas e de naufrágios e, ao longo do tempo, porta de saída de gentes rumo ao distante mundo da emigração. Mesmo a pesca, ou a cabotagem, foram sempre de subsistência ou de oportunidade, remetidas ao gueto de pequenas comunidades, tantas vezes segregadas e marginais.  

Até muito recentemente, o litoral, praias, poças e portinhos, eram lugar de baldio e atrevimento, largados à selvagem voracidade da juventude ou à ousadia da necessidade dos que aí buscavam amparo para a fome. A ideia do mar, ou desse espaço que o separa da terra, como lugar de prazer, de conforto e de alegria é extraordinariamente recente. Os Areais de Santa Bárbara são disso um exemplo, salvos por surfistas e ambientalistas da avidez dos saqueadores de areia. E é isso que explica o impressionante abandono a que tantos outros lugares, de igual ou maior potencial, foram sucessivamente deixados, ao longo de décadas, até o declínio e a ruína se apoderar de muitos deles, tal como agora, tragicamente aconteceu, no Porto de Santa Iria.

Bem sei que é injusto generalizar e que se tornou repetitivo colocar a todos nessa categoria demagógica de “os políticos”, mas o problema é que as situações são tantas e tão recorrentes, de todos os partidos, que não se consegue não utilizar esse epiteto, hoje tão depreciativo, para classificar toda uma classe de responsáveis públicos pela desgraça que se nos acometeu. O velho Porto de Santa Iria, é um dos mais belos e singulares lugares destas ilhas. Uma localização única, com uma história riquíssima. Os problemas de erosão, ou de manutenção, são conhecidos há décadas, por várias gerações de políticos, de ambos os lados do espectro partidário, com dezenas de promessas e de projetos, milhões de investimentos anunciados e o resultado foi a sua destruição, e, agora, com um novo rol de promessas e datas num caderno de encargos que inevitavelmente já não vai ser o mesmo.

Nos Açores, como as ribeiras que correm para o mar, despejam-se rios de dinheiro em coisas inúteis, em projetos horrendos, de interesse duvidoso, e sistematicamente negligencia-se o que é realmente relevante e significativo para a transformação de uma identidade e para a tão propalada sustentabilidade do arquipélago. Pegando apenas em São Miguel, a praia do Monte Verde, o Ilhéu, a Piscina das Feteiras, o Lombo Gordo, a Amora e o Degredo… e tantos outros lugares perdidos nesse “território do vazio”, como lhe chamou o historiador Alain Corbin, que é a orla marítima e o litoral.

São estes acontecimentos, tão tragicamente repetidos, que me levam a acreditar que os políticos são insensíveis à beleza, que, com o tempo, se tornam impermeáveis ao encanto dos lugares, da sua história e do legado do que nos rodeia e os devia, em absoluto, preocupar e ocupar. Talvez o que choque mais neste abandono frio e insensível do que nos é próximo e essencial não sejam as promessas incumpridas ou a farsa da sustentabilidade, mas essa ditadura demolidora do desleixo, do abandono e da simples falta de gosto.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Speakers' Corner 27

O ultraconservadorismo ambiental

Sábado último, um grupo de cidadãos assinou neste jornal um texto elogiando a interdição a banhos do Ilhéu de Vila Franca do Campo. Começando com uma exclamação de “Excelentes notícias!”, os autores do artigo reclamam a “devolução”, do Ilhéu, à sua “verdadeira função: um santuário natural.” Propondo que o uso balnear seria prejudicial para a biodiversidade deste “monumento geológico” e sugerindo “novas” formas de relação com o Ilhéu, “através de visitas guiadas conscientes”, escutar os silêncios, interpretação ambiental e programas de monitorização da biodiversidade marinha e terrestre do Ilhéu.

Pondo de lado alguma excitação negativa, que parece querer ver num problema de saúde-publica uma oportunidade proibicionista, há dois aspetos nesta visão ultraconservadora do ambientalismo que gostava de assinalar, pelo que, a meu ver, sinalizam de uma ideia distorcida do que são os Açores, por um lado, e do que deveria ser a preservação ambiental, por outro.

Começando por este último aspeto, existe uma corrente de pensamento que vê na interdição do acesso e da fruição da natureza o caminho para a conservação ambiental. Limite de acessos, capacidades de carga, interdições, épocas de defeso e todo um outro tipo de obstáculos à interação entre o homem e a natureza. Quase como se o estatuto de monumento, ou reserva natural fosse uma espécie de fronteira militarizada entre os bárbaros humanos, destruidores e incivilizados, e a virginal e impoluta natureza intacta das nossas nove ilhas atlânticas. Thoreau, escritor e ensaísta americano, um dos pais do transcendentalismo e ávido naturalista, escreveu, em “Walden”, um manifesto sobre a comunhão com a natureza, que buscamos a natureza para viver deliberadamente, “para afrontar apenas os factos essenciais da vida”, para aprender o que temos para ensinar, “e não, quando morrer, descobrir que não havia vivido”. Por oposição àquilo que Thoreau considerava serem as vidas de “silencioso desespero” da maioria dos homens. Precisamente, a melhor forma de proteger a natureza é educando as pessoas para sua vital importância e isso só é possível através da fruição dos seus espaços e ambientes e não se pode proteger o meio natural afastando as pessoas dele. Conservação é uma coisa, interdição é outra.

Por outro lado, a ideia errónea de que os Açores são um grande santuário natural intacto e puro é não só falsa como potencialmente perigosa. Toda a história destas ilhas é uma de interação entre homem e natureza. A virada das terras, os cultivos, a introdução de espécies, os Açores são esse moldar da natureza pelo homem e, por sua vez, da construção do homem pela natureza que o rodeia, tantas vezes castigando, outras acolhendo e nutrindo, com a sua opulência e abundância. E o Ilhéu da Vila, proteção e ancoradouro natural desde os inícios do povoamento, representa um exemplo singular dessa relação simbiótica e de interdependência entre o humano e o natural. Até 1942 a Vila Franca foi, por causa do seu Ilhéu, ancoradouro privilegiado da ilha, inclusive no interior do Ilhéu, o que levou ao rasgar de um canal de acesso logo no séc. XVI. Esta relevância levou mesmo à elaboração de um projeto para a construção de um ou mais molhes de ligação entre o Ilhéu e a ilha, para a criação de um grande porto oceânico, o que originou a criação da Companhia do Abrigo Marítimo do Ilheo de Vila Franca do Campo, da qual até a rainha D. Amélia e o rei D Fernando foram subscritores de ações. Ao longo dos séculos, o Ilhéu foi terra de cultivos, de vinha e pastoreio e, em 1933, zona de banhos e veraneio com a construção de uma casa de apoio pelo seu então proprietário António Botelho da Câmara Velho de Melo Cabral. Desde sempre o Ilhéu é parte fundamental da vivência micaelense e fonte perene dessa ligação entre homem, mar e natureza. Elogiar a sua interdição, mesmo que por ultraconservadorismo ambiental, é rejeitar a verdadeira natureza da vida insular.

 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Speakers' Corner 26

Réquiem por um Ilhéu

Se tivéssemos de elaborar uma checklist de meia dúzia de postais turísticos dos Açores, certamente o Ilhéu de Vila Franca seria um deles. Preso, como uma lua, à gravidade da ilha, o Ilhéu da Vila completa a paisagem e o horizonte da costa sul de São Miguel, encantando-nos com a sua majestade vulcânica.

E se, para quem nos visita, o Ilhéu é fonte de atração e curiosidade, para quem aqui vive ou cresceu, o Ilhéu é memória e parte intrínseca de uma identidade. Os banhos, as viagens no Cruzeiro do Ilhéu, o velho mestre Mané Cafua, os dias inteiros passados em bronzeada placidez, encontrando a melhor curva da rocha para nos deitarmos, os saltos das pedras para os mais afoitos, os caminhos, os picnics, as melancias, explorar as golas, passar debaixo do pontão na maré vazia, a viagem em torno do Ilhéu no último barco do dia na luz cálida do entardecer. O Ilhéu é, para locais e visitantes, uma parte fundamental da experiência micaelense, tal como o pôr-do-sol dos Mosteiros ou as águas quentes das Furnas.

Um verão sem Ilhéu é como a Terceira sem Angra, o Faial sem o Pico, São Jorge sem Fajãs, ou as Flores sem o Poço da Ribeira do Ferreiro, como tão mediaticamente se discutiu nos últimos tempos. É por isso que a notícia da interdição de banhos no Ilhéu na próxima época balnear merecia um verdadeiro sobressalto cívico da população micaelense e açoriana, tanto pelo que o Ilhéu representa para a vivência da ilha, como pelo que significa para a imagem do arquipélago, tão hipocritamente enlaçado no embrulho falso da sustentabilidadezinha, mas, acima de tudo, pelo que demonstra de incúria, inépcia e irresponsabilidade das políticas públicas e dos seus executores.

O problema está identificado, a Lei é do conhecimento de todos, tiveram anos para estudar e atacar a situação, juntos, autarquia e governo, porém, deixaram-no chegar a este ponto, privando-nos de um património público, jogando agora ao passa culpas costumeiro da responsabilidade do outro e da interpretação legal, num cinismo sem-vergonha e que envergonha. Desde 2016 que o Ilhéu recebeu as primeiras notas negativas sobre a qualidade da água, de novo em 2018, com classificação de Aceitável, o penúltimo numa escala de 4 níveis entre o Mau e o Excelente, e sucessivamente desde 2020, incluído 24, a classificação do Ilhéu foi, sempre, Má. Com a singular nota de ridículo, por parte dos responsáveis, de culpar as gaivotas pelo acumular de níveis perigosos de E. Coli. no interior das águas da piscina natural do Ilhéu.

É sabido que as obras invisíveis são aquelas que os políticos mais detestam, então se feitas debaixo do chão são ainda mais odiosas. Não há nada como uma boa rotunda, um pavilhão multiusos que ninguém use, ou um bom metro cúbico de betão na orla marítima para fazer a alegria de um autarca ou de um governante. O bom e útil saneamento básico é coisa para ingénuos. Não dá votos, dizem eles, quando agora, perante os impactos negativos, a crítica legítima e o poder a fugir-lhes pelas palmas das mãos, se contorcem em desculpas esfarrapadas e cambalhotas legais. Tiveram anos para construir uma ETAR e, pelo menos 5 anos, para resolver o problema do emissário submarino, impedindo este desfecho. Construíram restaurantes, fizeram festivais e betonaram praias pitorescas com obras monumentais. Por seu lado, o governo, entretido a comprar certificados e selos ambientais, fez comissões que assistiram, impávidas e serenas, sem fiscalizar, multar, ou até apoiar financeiramente a solução do problema. Citando Joni Mitchell, pavimentaram o paraíso para construir um parque de estacionamento. Aqui foi pior, transformaram o paraíso numa fossa a céu aberto. Agora todos sacodem a água do capote, quando na verdade estavam a ver se o mar levava o que não souberam, ou não quiseram, resolver. Mas, numa terra onde tudo vai parar à ribeira e da ribeira para o mar, o mar, na sua sabedoria, tudo devolve, para os desmascarar.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Speakers' Corner 25

“Rouba, mas faz”

A análise de resultados eleitorais é uma ciência obscura, dada a um sem número de teses e teorias, umas mais matemáticas, outras mais sociológicas, outras, ainda, politico-filosóficas, mas todas com um elevado grau de adivinhação, como uma espécie de oráculos da coisa pública perscrutando, entre académicos, comentadores, analistas e políticos, as entranhas sacrificiais das sondagens e das urnas, boletim a boletim, rua a rua, freguesia a freguesia.

Uma das magias benignas da democracia é essa imprevisibilidade do voto. A incapacidade intrínseca de prever o comportamento individual de cada eleitor e, com isso, o agregado do resultado eleitoral. Por mais elucubrações ou estratégias que se façam, nas democracias maduras, ou pelo menos naquelas em que o voto não seja adulterado, o povo é sempre soberano e cada cabeça é um voto e ganha quem tiver mais votos. Em teoria, a alternância democrática é uma das suas virtudes, a mudança de partidos na governação é uma espécie de sistema imunitário do exercício do poder, pelo que é sempre surpreendente os fenómenos de longevidade em democracia, algo que nos parece mais próximo da ditadura do que da liberdade.

São difíceis as análises sobre os resultados eleitorais na Madeira, onde o PPD/PSD, com Miguel Albuquerque, conseguiu este domingo a sua 14ª vitória eleitoral consecutiva, desde 1976, desta feita a 3ª em 3 anos e a escassos 300 votos de uma nova maioria absoluta. Um feito, a meu ver, com tanto de notável como de inexplicável. Podemos aviltar o caciquismo e as redes de dependência criadas ao longo de décadas numa sociedade pequena e insular. Podemos eventualmente remeter para um conservadorismo intrínseco dos madeirenses, atreitos à mudança ou a perigosos progressismos, inclusive causticados pelas experiências tantas vezes traumáticas de séculos de abundante emigração. Podemos ainda elaborar sobre o otimismo de uma região economicamente desenvolvida e com índices positivos, onde o turismo desempenha um papel fundamental na evolução do arquipélago, desde muito antes da própria democracia. O facto é que, mesmo com suspeições de corrupção, compadrio e laivos indesmentíveis de autoritarismo, o PSD de Albuquerque está de saúde e recomenda-se, isto até o Ministério Público aterrar de novo na ilha com a força e o peso de uns quantos C-130.

Mas estas eleições levantam duas questões importantes sobre a saúde geral das nossas democracias. Por um lado, a ideia de estabilidade, tão glosada nos últimos dias, principalmente por protagonistas como Bolieiro ou Montenegro, agitando a bandeira das virtudes de uma suposta estabilidade governativa, consubstanciada nestes resultados, e como se a estabilidade, só por si, fosse algo benéfico para um sistema que se quer dinâmico, evolutivo e, principalmente, rotativo. No que é uma óbvia confusão entre estabilidade e estagnação, que parece ser o caso do pântano democrático em que a Madeira se encontra, aprisionada entre o lodo e a falta de alternativa potável. Por outro lado, a velha questão do: “rouba, mas faz”, esse mantra que se instalou neste país de pequenos e grandes caciques e que convive bem com personagens como Valentim Loureiro ou Isaltino Morais. Agora com a agravante sistémica de um fenómeno que se supunha reduzido ao nível autárquico se querer alastrar, como um pútrido cancro metastizado, aos níveis mais altos do poder, onde políticos sem ética procuram transformar os atos eleitorais numa espécie de referendos à sua idoneidade pessoal e plebiscitos à sua conduta moral, transformando as eleições em salvo condutos para os seus desmandos individuais. É que, ao contrário do que nos querem fazer crer, Albuquerque e Montenegro, na sua demagogia populista e contrária ao Estado de Direito, o julgamento democrático não é o mesmo que o trânsito em julgado. E as eleições servem para avaliar projetos políticos e não para inocentar potenciais ilícitos criminais.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Speakers' Corner 24

A morte de uma árvore

Morreu a araucária. Viveu mais de cem anos, mas os ventos de domingo derrubaram-na. Velha, cansada, doente, tombou como uma imponente coluna jónica de um templo antigo, levantada pela raiz apodrecida, sobre os plátanos e os fetos que a rodeavam. O tronco vasto e inabraçável fez-se suportar sobre o caminho que sobe para o mirante, os seus galhos cravados no solo como lanças de uma batalha perdida contra o desenrolar inexorável do tempo, e ali jaz, como um cadáver, ainda de olhos abertos perscrutando o vazio no meio da tristeza calada que nos invadiu a todos.

Quando éramos miúdos trepávamos as arvores à procura de sonhos e outros frutos doces. Colecionávamos jambos, araçaís, nêsperas carnudas e suculentas, que saboreávamos em faustosos repastos de adocicado festim. Lançávamo-nos por entre os galhos como marinheiros suspensos nos velames. Pequenos Peter Pans de excitação e riso, saltitando, de ramo em ramo, como hábeis ginastas desprovidos de medo ou de receio, e a araucária era o castelo mais alto e intransponível de todos, o nosso Evereste infantil das subidas às árvores. Mais tarde, já adolescentes, eu e o André, fazíamos subidas anuais, todos os verões, aos galhos mais altos da araucária, ao topo dos seus vinte, trinta, cinquenta metros, tão alto como o horizonte que só dali se alcançava, contorcendo o corpo por entre a esquadria dos seus ramos retos, como antigos primatas, como velhos piratas, buscando ouros e tesouros. Em busca, talvez, de um mapa para o interior de nós.

A minha avó contava que a araucária tinha sido uma árvore de Natal da família, ainda antes dela ter nascido, nos primeiros anos do século passado, que o meu bisavô havia depois mandado plantar naquele lugar amplo ao fundo do jardim para que crescesse sem impedimentos, apontando ao céu com a sua forma cónica quase perfeita, como um símbolo do caminho que todos aspiramos até à eternidade. Cinco gerações depois essa eternidade passada pereceu, caiu, tombada pelo peso da sua própria ancestralidade e história. Pela inevitabilidade da própria vida que se desfaz em morte e renascimento, sucessivamente, em busca, tal como nós, de sonhos, de ínfimos relances do firmamento, como só as árvores, na sua firme sabedoria, nos sabem dar.

Ao longo do tempo, a minha avó e as irmãs, a minha mãe e os meu tios, eu, a minha irmã e os meus primos e amigos, todos corremos pelo jardim à sua sombra, rodeamos as suas raízes em brincadeiras simples, os primeiros e atabalhoados pés nos pedais das bicicletas, as cabanas construídas com folhagens dispersas, os passeios ao entardecer com possíveis e desejadas namoradas. Algumas vezes levei as minhas filhas a visitar a velha araucária como se fosse alguém da família e levo no coração a tristeza de que elas já não verão a sua sombra altiva sobre o jardim e a luz do sol poente nas tardes de outono aquecendo o seus ramos, os milhafres aterrissando nos seus ramos cimeiros, o som da brisa passando pelos estiletes das suas folhas lanceoladas cujas pontas, quando éramos miúdos, fingíamos serem adultos charutos que fumávamos crescidamente como cavalheiros de barbas e casaca nos salões de antigamente.

Morreu a araucária, mas, como em todas as mortes, sobrevivem em nós as memórias que guardaremos até ao nosso próprio fim. Ficam-nos os pedaços do tempo que guardamos na alma, na essência mais límpida do ser. O coração não, o coração bate incessante inconsciente ao seu próprio bater. A mente perde-se nos seus labirintos, infinitos corredores entre a razão e o mito, entre consciência e ilusão. A alma guarda-nos, sustem-nos nessa permanente viagem do devir e da intermitência das coisas. Morreu a velha araucária, mas a sua presença viverá para sempre dentro de nós, porque na densidade contida da floresta uma árvore só nunca morre. Tal como nas memórias e nos sonhos que vivem para sempre no interior silencioso e ensombrado da alma de cada um de nós, quem sabe se mesmo até depois da nossa própria morte…

quarta-feira, 12 de março de 2025

Speakers' Corner 23

Restauração Democrática

No próximo ano comemorar-se-á o centésimo aniversário do 28 de Maio de 1926, o funesto golpe de estado que pôs fim à Primeira República e abriu a porta para os 48 anos de ditadura do Estado Novo. A história da Primeira República foi marcada por uma permanente e agitada convulsão política e social. Do fervor republicano ao sidonismo, passando pelas tentativas de reinstituição da monarquia, do anticlericalismo ao esforço de recuperação económica, passando pelos enormes abalos globais da Grande Guerra e da Gripe Espanhola, o sonho republicano, que atravessou o país como uma honrosa utopia progressista, cedo se tornou numa enorme balburdia que gerou nada mais do que 49 governos, 40 chefes de governo e 29 tentativas de golpe de estado, duas delas em 1925, a primeira das quais, a 18 de Abril, liderada por um hoje desconhecido Filomeno da Câmara de Melo Cabral, oficial da Armada, natural deste bucólico concelho de Ponta Delgada e cujo nome herdara de seu pai, famoso médico e hidrologista, pioneiro do termalismo nas Furnas.

A ideia, elaborada por Hegel, de que a história se repete sempre duas vezes e glosada depois por Marx, de que esta se repetia primeiro como tragédia e depois como farsa, e a que Mark Twain responderia mais tarde com a sua máxima de que a história não se repetiria, mas que rimava, tem perpassado pela filosofia ao longo dos tempos e surge hoje, no atual estado do mundo e do país, com particular acuidade e pertinência. Quem siga, mesmo que distraidamente, o rumo do mundo e da nação não pode deixar de ler estranhas e impressionantes semelhanças entre 2025 e 1925, ao ponto de se poder, justificada e apropriadamente, citar o refrão desse dançante tema da banda inglesa Propellerheads, na voz da cintilante Shirley Bassey, “it's all just a little bit of history repeating”.

Se a presente crise da democracia portuguesa se repetirá, ou não, numa nova deriva totalitária é ainda cedo para dizer, mas que há algo neste desvario político moderno que rima com a ebulição republicana, isso é inegável. Não vale a pena elaborar mais nos desmandos de Luís Montenegro, entre a empresa familiar e os buracos de golfe com grandes empresários do Norte que, alegadamente, o manteriam no rol das avenças à renda de 9 a 15 mil euros mensais. Mas esta promiscuidade entre política e negócios, e a consequente fuga para a frente do primeiro-ministro, que coloca o país perante uma instabilidade política preocupante, 3 eleições em pouco mais de 3 anos, é em tudo semelhante às tumultuosas primeiras décadas do século vinte português.

Também não é fácil antever o que sairá destas novas eleições. Como irá o cansado eleitorado reagir a mais esta estultícia da política nacional? Será Montenegro penalizado ou irá o eleitor fazer vistas largas à ampla e largamente flexível espinha ética do líder da AD? Conseguirá Pedro Nuno Santos fazer esquecer as improbidades do costismo ou o arrivismo juvenil do líder do PS continuará a afastar de si os eleitores do centrão? Não vale a pena arriscar em previsões, nestas eleições inesperadas e em grande medida indesejáveis, mas não é preciso ser vidente para pressentir que o caldo está propício é para os Venturas, com ou sem criancinhas nas malas, e para os Almirantes, com as suas sebastiânicas e retrógradas alocuções à grandeza pátria, tão assustadoramente próximas de 1926.

A única redenção para este pântano em que o país está novamente mergulhado é a sublevação dos moderados, a revolta dos democratas e a afirmação firme daqueles que ainda acreditam que é na ética republicana e na moral pública que reside a essência da democracia representativa. Este Maio que aí vem, terá forçosamente de marcar o ponto de partida para essa verdadeira Restauração Democrática que o país tão urgentemente precisa, sob o risco de, ao revés, nos projetarmos outra vez num longo, árduo e imprevisível inverno democrático…

quarta-feira, 5 de março de 2025

Speakers' Corner 22

Tragédias do desgoverno nacional

No início de Novembro de 2023, depois de quase um ano de uma surpreendente convulsão política, às mãos de um governo de maioria absoluta mergulhado num caos sucessivo de escândalos, intrigas, investigações e suspeitas, o país foi surpreendido por uma ação policial em São Bento, que levaria à demissão de António Costa, no meio de um parágrafo da Procuradoria-Geral do Ministério Público e uns quantos maços avulsos de notas escondidos nas estantes do seu chefe-de-gabinete.

Uns poucos dias depois, Marcelo Rebelo de Sousa comunicava ao país a sua decisão de convocar eleições, alicerçado na presunção, aliás criada por si, de que a maioria eleitoral existente era de Costa e não do PS e, nas suas palavras, na impossibilidade de manter em funções um governo fraco e que seria visto, assim, como um governo de iniciativa presidencial. Ao mesmo tempo, o líder do PSD, Luís Montenegro, alinhava pelo mesmo diapasão da urgente ida às urnas alegando que “a degradação do governo impõe a devolução da palavra ao povo” (sic). De facto, o pouco mais de um ano e meio do segundo governo de Costa parecia uma inexplicável via sacra de casos, casinhos e casões, entre ministros e secretários de estado, envolvidos nos mais rocambolescos e degradantes episódios de corrupção e desgoverno até, por fim, subir ao cargo do próprio Primeiro-ministro.

Fast forward para os dias de hoje e temos um governo de minoria parlamentar frágil e acossado, mergulhado em incompetências e incompatibilidades, cujo fumo da suspeição chegou, também finalmente, ao próprio Luís Montenegro. Depois do caos na Saúde, do escândalo do INEM, da incompreensível Lei dos Solos, noticiam os jornais que o Primeiro-ministro de Portugal, o tal da degradação do anterior governo, está desde a sua tomada de posse a receber chorudas avenças de empresas privadas, entre elas a Solverde dos casinos, através de uma empresa familiar, cuja participação terá vendido, em ato nulo, à sua mulher, com quem é casado em comunhão de adquiridos. De um passo, ficamos a saber que Montenegro é, não só, um péssimo advogado, como, ainda por cima, um igual hipócrita aos que tanto criticava antes de si. E que, numa surreal declaração ao país, em horário nobre televisivo, ensaiou uma fuga para a frente em dois atos, delegando a empresa aos seus filhos, de 19 e 23 anos, admitindo dessa forma a prevaricação anterior, e ameaçando, no jogo político-partidário, a roleta-russa das moções de censura e de confiança. Quando o único caminho digno que se lhe apresentava era demissão pronta e segura e a consequente convocação de eleições.

Mas, tão mau ou pior do que a hipocrisia e o cinismo político de Luís Montenegro, ou o cúmplice e inusitado silêncio de Marcelo, é o contorcionismo acobardado do principal líder da oposição, Pedro Nuno Santos, que é incapaz de se confrontar, preso que está no seu próprio labirinto partidário, com a exigência moral de fazer cair este governo, seja apresentando ele próprio uma moção de censura, seja votando favoravelmente outra de um qualquer outro partido, como a já anunciada pelo PCP.

Nos últimos anos muito se tem debatido as razões para a ascensão dos populismos, da demagogia e da polarização política, que tem minado as democracias e levado à escolha pelo eleitorado de políticos e partidos iliberais e de tendência totalitária. Políticos e comentadores repetem-se na condenação do discurso dos Andrés Venturas desta vida e espantam-se com a fulgurante aparição de todo o tipo de Almirantes. A realidade é que a crise das democracias está no seu próprio âmago e nos degradantes comportamentos dos que se dizem defensores da moral e do bem-comum, quando na verdade apenas se preocupam com o seu próprio bem pessoal e com os joguinhos políticos da dança das cadeiras do poder.

Olhamos as notícias e as ações e os discursos dos políticos atuais e enche-nos uma sensação enjoada de que isto já não é um país, mas um pântano sem fundo…

 

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 21

Batendo aos portões de Santana

Ponta Delgada, que foge ao PS desde 1989, tem sido uma pedra no sapato político das sucessivas direções socialistas. Por um lado, é alvo apetecido, a principal autarquia do arquipélago e feudo social-democrata de longa data, por outro representa uma ameaça tácita ao status quo diretivo do partido. Ser presidente da câmara de Ponta Delgada representa uma espécie de pole position para a conquista do Palácio de Santana, como se os portões de Santana se abrissem ali junto às Portas da Cidade, pela importância e visibilidade que o cargo confere. Por isso, as direções do PS sempre olharam com desconfiança para essa disputa eleitoral. Não podem deixar de concorrer, apresentando candidatos suficientemente relevantes para não serem acusados de falta de comparência, mas sempre secretamente conspiraram para que o partido não saísse vencedor dessa particular eleição. Nos últimos anos, os líderes do PS optaram sempre por não se empenhar totalmente nessa corrida, percebendo que qualquer presidente da câmara de Ponta Delgada se tornaria instantaneamente na segunda figura do partido e opositor interno inevitável. Na lógica do controlo do poder convêm que as sucessões, ou as putativas ameaças à liderança, sejam geridas pelos próprios e sem radicais livres a correr por fora nas suas próprias pistas.

Este ano, a corrida a Ponta Delgada reveste-se de um interessante conjunto de pormenores aliciantes. Desde logo, são as primeiras eleições autárquicas desta direção do PS, e com a condicionante de este estar na oposição a nível regional, o que torna o resultado conjunto destas eleições autárquicas determinante para o seu futuro político. Por outro lado, há um notório e palpável desgaste do atual executivo camarário, corporizado na altivez e autoritarismo do seu presidente, que criaram enormes anticorpos junto de diversos sectores da sociedade civil, das empresas e do eleitorado em geral. Já para não falar no surgimento de uma candidatura independente, saída precisamente das fileiras do PS e largamente criada pela inabilidade das direções do partido, concelhia e regional, em dialogar com os seus críticos e gerar consensos dentro do próprio partido.

No passado fim-de-semana os órgãos dirigentes do PS aprovaram, finalmente, os seus cabeças de lista às próximas eleições autárquicas. De entre uma mais ou menos anódina e pouco surpreendente lista de nomes o destaque maior recaiu, obviamente, sobre o nome anunciado à câmara de Ponta Delgada que, ao fim de um longo e conturbado processo, que ao que consta até sondagens envolveu, naquilo que o líder do partido classificou, eufemisticamente, de “rapidez possível”, calhou a Isabel Almeida Rodrigues, alguém com um inegável currículo político e capacidades, mas que se encontra ausente da política local há vários anos. Na atual conjuntura, as primeiras ações da candidata agora anunciada serão determinantes para se perceber se esta é uma candidatura ganhadora ou se, mais uma vez, o PS apenas pretende não perder por muitos, iniciando desde já o spin dos resultados para as análises de contexto e outras desculpabilizações.

Caberia objetivamente ao PS afirmar-se como líder de uma grande coligação de oposição ao trabalho do atual executivo camarário, chamando a si, não só os dissidentes, começando pela própria candidata independente, figuras da sociedade civil e até outros partidos para, tal como em 1989, consubstanciar uma candidatura que fosse agregadora, abrangente e plural, concretizando-se em propostas concretas e inovadoras aos problemas que o concelho, nas suas múltiplas assimetrias, enfrenta e merece ver solucionados. Caberá à candidata do PS dizer ao que vem, embora sabendo que já vem tarde. Quanto ao resto, o resultado dirá se os dirigentes do PS queriam de facto ganhar Ponta Delgada ou se, afinal, e como tem sido habitual, esta foi apenas e só uma candidatura para cumprir calendário.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 20

Natureza intacta e outros mitos

Por estes dias, a pacata ilha das Flores tem sido abalada por uma inusitada intempérie. Desta feita, a razão de tal rara fama são já não as intermitências meteorológicas, mas as adversidades paisagísticas e territoriais. Este furacão tem várias incidências, algumas do foro sociológico, outras jurídico, mas duas dessas questões, em particular no que concerne ao âmago da uma certa ideia de Açores, são suficientemente significativas para permitirem uma análise mais teórica, ou mesmo filosófica, se quisermos, e uma atenção que se devia expandir e generalizar às restantes ilhas.

Pelo que foi tornado público, um casal estrangeiro radicado na ilha terá vindo a adquirir uma série de terrenos privados nas imediações e acessos ao famoso Poço da Ribeira do Ferreiro. Recentemente, esses novos proprietários do local terão vindo a desenvolver uma série de trabalhos de desmatamento e limpeza do coberto vegetal, tentando restituir a paisagem ao seu uso passado. Das diferentes reações que se têm feito ouvir, primeiro nas redes sociais e depois na pantalha televisiva, as principais preocupações da população, para além de um receio de privatização do acesso ao espaço, prendem-se com a adulteração do cenário natural e a índole jurídica da posse de um cartaz turístico regional, numa dicotomia público-privada aparentemente de difícil resolução num arquipélago onde praticamente tudo é, ou já foi, privado.

A ideia da natureza pura, ou intacta, com que os Açores se têm promovido ao longo dos tempos radica num infeliz desconhecimento da história e num logro comercial baseado no mito da virgindade da nossa paisagem. Os Açores são, na verdade, um caso de estudo de uma paisagem toda ela humanizada por seiscentos anos de trabalho da mão do homem. A chegada dos primeiros povoadores é marcada, desde logo, por aquilo que ficou conhecido como a “virada das terras”, um infinitamente laborioso processo de remoção dos mantos vegetais de floresta Laurissilva autóctone e da lava, por forma a se obterem extensões de terra arável e passível ao cultivo. Este rendilhado de muros de pedra seca e terra de cultivo, do cereal à vinha, ou a atual pastagem, aqui e ali pontilhada de hortênsias e conteiras ou matas de criptomérias, espécies todas elas importadas, construído com suor ao longo dos tempos, são aquilo que hoje marca e distingue a paisagem açoriana e não podiam estar mais distantes dessa ideia romântica de natureza intacta.

O que este episódio nos devia levar a debater é precisamente que paisagem somos ou queremos ter e que território queremos promover para o estrangeiro, seja por via do turismo, seja por via do repovoamento das ilhas com populações, vegetais ou humanas, forasteiras, algo que, também, sempre caracterizou as nossas ilhas. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático de Thomas Hickling e o seu deslumbrante e icónico Jardim Terra-Nostra.

Por outro lado, a colaboração, ou a falta dela, entre público e privado, na gestão do território, na utilização da paisagem e na promoção de modelos de desenvolvimento para as ilhas também nos devia inquietar. A verdade é que os poderes públicos, sejam autárquicos ou autonómicos, têm-se pautado por um impressionante desleixo face ao ambiente e à paisagem, na grande maioria dos casos, do qual o mais latente talvez seja a tentativa e inexplicável abandono da reflorestação e arranjo paisagístico da bacia hidrográfica das Furnas. Se há coisa que os sucessivos governos nunca souberam fazer é preservar e desenvolver o património seja ele natural, construído ou a mistura dos dois. Basta ver o exemplo da paupérrima e cronicamente suborçamentada rede regional de museus, ou um mirabolante projeto de miradouro para a cumeeira da Lagoa do Fogo, para perceber como o Estado é mau gestor da coisa pública. Se esta interessantíssima polémica nos trouxesse reflexão contextualizada, extensível às nove ilhas do arquipélago, sobre uma ideia de futuro para os Açores, já não seria mal empregue…

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 19

O país dos doutores

A notícia passou mais ou menos despercebida entre o corrupio mediático nacional, entretido com o cúmulo jurídico dos deputados do Chega e a minimaratona dos putativos presidenciáveis, mas conta-se facilmente. Na sua mais recente revisão do contrato coletivo de trabalho, a AHRESP e o Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Serviços acordaram, entre outras coisas, a alteração da velha designação de “empregado de mesa” para uma mais moderna e fina denominação de “assistente de sala”. Diz o Expresso que a nova nomenclatura visa valorizar aquela que é vista como “uma das profissões mais mal amadas no turismo” (sic!). Um pouco como os cozinheiros que agora são todos chefs.

Esta poderia ser mais uma inconsequente e inócua aventura do tão em voga processo de cancelamento em curso. Em que as nossas sociedades se entretêm a rever terminologias, sinaléticas de wc e outros mais ou menos estapafúrdios detalhes de comportamento e inter-relação cultural e social. Mas, temo que haja aqui um sinal de algo mais profundo e alarmante com que nos devíamos todos preocupar: a continua desvalorização social de profissões determinantes.

Portugal sempre foi um país classista. São resquícios de um certo feudalismo intrínseco, e de uma certa imposição religiosa, que nem uma ascensão fulgurante de uma burguesia mercantil conseguiu aplacar. Salazar, como bom corporativista que era, para além de anticomunista primário, como todos os fascistas, procurou estabelecer um regime ditatorialmente controlador dos agentes económicos, funcionando como juiz das relações entre patrões e trabalhadores, oprimindo as liberdades dos últimos, mas também limitando muitas vezes as licenciosidades dos primeiros. Isto levou a um país de doutores, onde todos querem ser patrões, todos anseiam ser chefes e ninguém quer ser servente, muito menos simples trabalhador.

No seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber estabeleceu as bases da teoria da correlação entre filiação religiosa e estratificação social, tendo por base as estatísticas laborais da Alemanha no dealbar do século XX, identificando a propensão do puritanismo protestante pelo capital e o trabalho, e a maior inclinação humanista do catolicismo e a sua inerente tradição de culpabilização da riqueza.

O nosso país, eternamente enredado nas suas múltiplas manifestações do “Fado, Futebol e Fátima”, vive nessa teia de sub-reptícias hierarquias e vergonhas, onde riqueza e trabalho, estatuto, ou status, social, se quisermos, e relevância se imiscuem num permanente caldo cultural de idealização e embaraço. O aristocrata rural deu lugar ao doutor citadino e ambos dominando a criadagem com leves ares de sobranceria numa mão e caridadezinha na outra. Os eternos Tomás de Palma Bravo, de “O Delfim”, de Cardoso Pires, espécie de retrato último desse conservadorismo patriarcal e cínico português, que se pela por um BMW e a vivenda com piscina e, agora, com a interpretação semiótica da categoria profissional.

Vivemos num país onde todos querem ser doutores ou engenheiros, advogados e juristas, médicos, de bata branca e consultório privado, que, como dizia o Eça, é “chique a valer”. Já ninguém quer ser pedreiro ou carpinteiro, e até esses já só sonham ser empreiteiro, nem já sequer empregado de mesa, que isso é coisa para paquistanês fazer. Num país sobrelotado de licenciados, com canudos inúteis debaixo dos braços, tristes e incompetentes nas suas funções de técnicos superiores de vão de escada de secretaria governamental o que realmente faz falta são competências e trabalhadores. Quando terminei a universidade, nessa coisa dos títulos, autodenominei-me de “poeta, surfista e cultivador de ananases”. Hoje, depois de tudo o que já vivi, fico-me pela singela categoria de mero e simples estalajadeiro. Num país de tantos maus doutores, o que mais falta faz são bons empregados de mesa…

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 18

Balas e brioches

Diz-se que ao se aperceber dos gritos da turba que marchava às portas de Versailles, Marie Antoinette, terá perguntado porque gritava a multidão? À resposta - porque têm fome, a mulher de Louis XVI terá respondido - dêem-lhes brioches. Verdade ou não, a frase tornou-se símbolo do desfasamento, da distância, ou detachment, na sua formulação inglesa, se quisermos, que talvez seja a mais adequada, entre governantes e governados. Impregnada pelos mais puros ideias - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - a Revolução Francesa, que em breve fará 250 anos, foi uma sublevação das massas desfavorecidas contra a elite, cada vez mais distante e abjeta, presa nos seus faustosos castelos e pompa extravagante. À época, o maior grito da moda masculina eram os calções de seda que os aristocratas usavam e a grande multidão popular para sempre ficaria conhecida como os sans-culottes. Por mais bela e justa que fosse a origem desse grande movimento popular, que ainda hoje marca a geografia política mundial, a revolução terminou num enorme banho de sangue e na vertigem ditatorial napoleónica.

Nos últimos dois dias, numa das primeiras iniciativas de António Costa, os líderes europeus reuniram-se no Palácio d’Egmont para uma reunião informal dedicada aos temas da defesa onde marcaram presença dois convidados especiais, Mark Rutte, secretário-geral da NATO, e Kier Starmer, o primeiro-ministro inglês. Rutte, que é bom não esquecer era o primeiro-ministro holandês quando o seu execrável ministro das finanças, Dijsselbloem, lançou sobre os países latinos o anátema dos copos e das mulheres, já tinha estado em Lisboa, na última semana, avisando-nos para a ameaça russa, cujos navios e mísseis se aproximam das costas portuguesas, como as potentes ondas do canhão da Nazaré. Tal como esse outro paladino do povo tornado empedernido falcão, Mário Draghi, que marcou presença numa reunião do conselho de estado para enfatizar a urgente necessidade de uma deriva militarista, aconselhando avultados investimentos em armamento como o novo rumo estratégico da economia europeia.

Depois de se terem colocado nas mãos da indústria farmacêutica, de formas pouco transparentes, em que biliões dos nossos impostos foram injetados em grandes multinacionais por causa de um medo indizível e não identificado, os líderes europeus preparam-se para ir para a cama com o complexo industrial militar, desta vez sob a égide do fantasma de Putin. A Europa, em tempos um bastião da paz e da concórdia, parece agora querer arrastar-se para uma militarização abominável e sem sentido, numa amnésia coletiva dos seus mais altos representantes sobre o que foram as duas grandes tragédias do século XX.

Numa das suas últimas declarações públicas, Antony Blinken, secretário de estado de Joe Biden, apelava cinicamente a que os ucranianos baixassem a idade do recrutamento militar, como forma de alimentar a máquina de extermínio de uma guerra suja, numa Ucrânia onde Zelensky já veio admitir que apenas recebeu metade dos mais de 175 biliões de dólares em ajudas financeiras dos EUA, para uma guerra  determinada pelos interesses financeiros dos grandes conglomerados financeiros, a quem praticamente todos os políticos se submetem, como a Black Rock, por exemplo, um fundo que é detentor de parte da Pfizer e um dos maiores investidores mundiais na indústria de defesa.

Desde 2008 que o mundo se debate com sucessivas ignomínias, em que os mais pobres são alimento fácil para a voracidade dos falcões, banca, alta finança, farmacêuticas e indústria militar. Talvez quando os nossos filhos forem chamados a perder a vida nas fronteiras do Leste, ou aqui, nas águas do Atlântico, a grande massa dos descamisados do mundo, os eternos sans-culottes, possa acordar da sua letargia e marchar novamente sobre os palácios do poder, onde ao som do Hino da Alegria um qualquer António Costa se comova com um banal - sirvam-lhes brioches...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 17

O Arruda Arrenegado

Reza a história que Mateus Pedro d’Arruda, o Arrenegado, terá nascido nesta cidade de Ponta Delgada, nas últimas décadas do século dezassete, sendo o primeiro dos “Arrenegados da Rua do Lameiro”, assim descritos nos livros de contas do mosteiro de Santo André, a quem pagavam foro fixo anual de 480 réis por uso de vinhas e outras terras que faziam parte da doação de dito convento e que estes trabalhavam. Estes Arrudas foram família burguesa abastada deste burgo pontadelgadense, sendo seu neto José Joaquim d’Arruda detentor do primeiro estabelecimento de carruagens desta cidade, sito à rua João de Deus, onde hoje fica a rua António Joaquim Nunes da Silva, traseira ao Teatro Micaelense.

Consta que o desditoso cognome vinha de um tal António Álvarez, avô paterno de Mateus Pedro, dito escravo branco ao serviço do licenciado António Pereira Botelho, que por ser mouro cativo, capturado, ao que se diz, de uma das muitas incursões que os piratas magrebinos usavam fazer às ilhas deste arquipélago e que, por ter renegado a sua fé e se convertido, ganhou o famigerado epíteto de “o Arrenegado”, pelo qual os seus descendentes seriam reconhecidos até bem dentro do século passado.

Na última semana, ganhou fama o deputado Arruda, do Chega!, que não consta seja da família, espécie de personagem picaresca de um qualquer pantera cor de rosa dos tapetes rolantes da Groundforce, por grotesca razão do furto de bagagem alheia na sempre entediante sala de recolha do aeroporto Humberto Delgado. E, ato continuo, por ter sido ele mesmo arrenegado pelo seu próprio partido, numa impressionante demonstração de mortal encarpado à retaguarda de hipocrisia política.

Pouco mais haverá a dizer, de tal forma o absurdo do episódio já foi escalpelizado pelos tribunais mediáticos e pelo júri das redes sociais, sobre esta súbita notoriedade do deputado Arruda. Mas talvez seja bom refletirmos um pouco sobre a questão da representação política e a forma desabrida como tanto jornalistas, como comentadores e até, pasme-se, outros seus colegas deputados, se aproveitaram das malas abafadas do deputado Arruda para afrontar a fraca qualidade dos nossos eleitos, fazendo por passar a ideia de que se trata de fenómeno tão recente quanto preocupante. E, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tentando afastar-se do deputado Arruda, ostracizando-o.

Basta regressar a Calisto Elói, austero e conservador fidalgo transmontano, corrompido pela luxúria da capital lisboeta, figura central do pouco celebrado e muito esquecido “A Queda de um Anjo”, grande romance de Camilo Castelo Branco, para perceber como já nos idos de oitocentos tanto o Parlamento, como Lisboa no seu todo, eram chão fértil para a corrupção e a caricatura. Não que eu queira fazer do deputado Arruda um anjo, longe disso.

O que a história ensina é que os parlamentos são espelhos das sociedades de onde emergem e enfermam dos mesmos vícios e virtudes daqueles que se dizem representar. E talvez seja exatamente aí, na origem e caráter dos nossos eleitos que nos devamos concentrar. Na nossa democracia já tivemos um pouco de tudo, desde gravadores surripiados, a autarcas condenados e reeleitos, até primeiros-ministros indiciados. A arte do furto é uma espécie de disciplina obrigatória do nosso curriculum parlamentar. Ao que parece, ao deputado Arruda só lhe falhou o engenho de não se deixar apanhar na arte de larapiar. A realidade é que entre os dramas do deputado Arruda, com a sua insana bagagem, e os múltiplos Calistos Elóis que pululam pela política nacional, cujo talento principal é escapulirem-se melhor aos registos videográficos da ladroagem pública, pouca diferença haverá. E é precisamente isso que urge contrariar, essa ideia cristalizada de que na política são todos iguais ao mais recente Arruda, o Arrenegado. É caso para dizer, merecíamos políticos melhores, na origem, no caráter, na postura e na linguagem e, principalmente, no tipo de bagagem que transportam consigo. Porque, em boa verdade, a política somos todos nós…  

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 16

O sonho americano

Washington chamou-lhe “os emaranhamentos europeus”. Monroe, na sua famosa doutrina, aprofundou a tese da “américa para os americanos” e defendeu o distanciamento face aos permanentes conflitos entre as nações do velho continente. Mais tarde, no vórtex da Primeira Grande Guerra, Woodrow Wilson, um Democrata, cunhou a entoações de discursos radiodifundidos o slogan populista de “America First”, evitando a todo o custo a intervenção da grande potência da liberdade e da prosperidade numa Europa hostil e caótica.

A História, na verdade, ensina-nos que o sonho americano foi construído por antítese à Europa. As várias nações das Américas, sendo naturalmente os EUA o seu principal protagonista, foram construídas por homens e mulheres evadidos ao caos europeu de injustiça social, perseguição religiosa e pequenas nações permanentemente em conflito. Ao longo dos séculos, as Américas, e os Estados Unidos da América, foram o porto de abrigo de sucessivas gerações de desfavorecidos das várias nações europeias aportando ao novo continente em busca de Liberdade e Prosperidade e em fuga, muitas vezes enraivecida, ao desastre europeu.

Há uma certa húbris neste sentimento de que a América deve, por alguma razão superior, quase metafísica, acompanhar a Europa nas suas  dores e dificuldades, como se de um filho se tratasse, que deve cuidar do seu progenitor idoso nos seus anos finais de vida. Depois de ter sido salva duas vezes no século passado da autodestruição, a Europa observa em pânico o regresso dos EUA à sua verdadeira natureza de nação iminentemente isolacionista, agora na retórica alaranjadamente simplista de um  Trump messiânico e demagógico. Também nisso a História nos mostra que não há grande originalidade. Para desgosto dos muitos editorialistas e especialistas dos órgãos de comunicação social ditos mainstream, os EUA sempre foram pródigos em políticos grandiloquentes, populistas e, eminentemente, antieuropeus.

Talvez, mais importante do que censurar a narrativa trumpiana, a Europa devesse olhar para si e perceber os seus próprios falhanços e debilidades, reconstruindo-se como farol da tolerância e da igualdade. O que a tomada de posse de Trump revela é a própria incapacidade europeia de se afirmar como protagonista relevante, alicerçado na confirmação social, cultural e económica dos seus valores fundacionais. Ao revés, a Europa vê definhar as bases do Estado Social, da livre circulação e da prosperidade definida no projeto europeu, mesmo da própria paz no continente, soçobrando sob a opressão das suas próprias forças internas que, como Mark Rutte, que hoje se regozija com a perspetiva de uma Europa militarizada e “turbo-carregada” de despesas em armamento e defesa, se comprazem com a perspetiva de uma nova vertigem bélica no continente. A grande ameaça à Europa não é Trump, muito menos uma América orgulhosamente só, mas a implosão do sonho europeu de paz e desenvolvimento num continente de nações finalmente reconciliadas entre si.

Bruxelas capitulou aos pés dos mercados e da alta finança. Estrasburgo soçobrou sob o peso da sua própria burocracia e irrelevância prática. Paris e Berlim perderam-se no caleidoscópio da histeria pós-ideológica. E a velha Albion refugiou-se de novo na sua insularidade pragmática. Não admira que em Roma, Georgia Melloni reclame em excitação mussoliniana a refundação de um novo Império Romano com a cidade do rio Tibre como nova capital europeia.

Enquanto Trump se apresentava como o novo escolhido de Deus e o arauto de uma nova “era dourada”, e Biden perdoava, na vigésima quinta hora, o inefável Fauci e mais uns quantos membros da sua família, a Europa enfunava-se para mais um encontro global de interesses não escrutináveis em Davos, Portugal debatia o futuro de Vitor Bruno e o calvário portista e, nos Açores, entre sismos e depressões (meteorológicas e mentais…), Tony Carreira era apresentado como figura de proa da nova programação do Coliseu Micaelense. Cada um têm o que merece.