Abril e a exaltação do afeto
Resisto a escrever sobre o Papa. Não tenho fé, não sou
crente, uma estante alta e gasta de pensamento separa-me da sua figura. No
entanto, consigo reconhecer-lhe a inteligência e o carisma. O culto do afeto, a
peculiaridade do humor e uma omnipresente preocupação pela fraternidade, que
fazia de Bergoglio, fã confesso do San Lorenzo, o clube do Bairro de Boedo, em
Buenos Aires, essencialmente um Homem e muito mais do que o representante de
Deus na Terra. Este Papa era um agente da Igualdade e da Fraternidade entre os
homens, valores que, esses sim, sou capaz de compreender, não só com a luz da
razão, mas, também, com as emoções de um coração que sente.
Neste tempo de desagregação, em que um pressentimento de fim
emana pelo ar da história, contaminando com a premonição da decadência e a
previsão do desastre, o desenrolar dos acontecimentos humanos, como se toda a
nossa civilização se preparasse para colapsar, líderes como Jorge Bergoglio, mesmo
na Igreja Católica, uma instituição com mais de dois mil anos de contradições,
são uma réstia de esperança num mundo em erupção negativa, afundando-se sob o
peso da sua própria autodestruição. Talvez pressentindo esse simbolismo é que
escolheu chamar-se Francisco, como São Francisco de Assis, que amou toda a Criação
e a quem Dante apelidou de a “luz que brilhou sobe o mundo”.
Bergoglio trazia consigo, no fundo, essa ligação premente e efetiva
ao humano, às fragilidades e às perplexidades da vida, com as suas naturais incongruências
e debilidades. Os pobres, os incompreendidos, os que são diferentes, os que
fogem, os que erram e os que são selvaticamente oprimidos pela violência
incontida da guerra, do capitalismo selvagem ou da pura e simples falta de
empatia contemporânea. Esse, talvez, seja o seu maior ensinamento – a mão que
busca o outro, que ampara e oferece o afeto.
Na próxima sexta-feira assinalam-se os 51 anos do 25 de
Abril, a Revolução dos Cravos, que procurou trazer a paz e a liberdade, a
democracia e a prosperidade, a um país refém de quarenta e dois anos de uma ditadura
do Estado Novo, em guerra consigo mesmo e ostracizado aos olhos do mundo. Abril
era, em muitos aspetos, essa promessa de empatia, de respeito pelas liberdades,
direitos e garantias dos cidadãos, iguais perante a lei e o Estado. Cinquenta e
um anos depois perguntamo-nos se se cumpriu Abril? Se logramos alcançar essa
sociedade justa e equitativa? Que criasse oportunidades e riqueza, que fosse redistributiva
e equilibrada, que mitigasse a pobreza, não acabando com os ricos, mas acabando
com os pobres, como assinalou Olof Palm?
De certa forma, olhando hoje o país, há uma sensação de
derrota, de algo que falhou, tal como, de certa forma, falharam as próprias
celebrações dos 50 anos de Abril, mais ou menos dispersas e envergonhadas,
incapazes de galvanizar o país na exaltação dos seus valores. O país falhou na
justiça, falhou na prosperidade, falhou no respeito e na equidade. E falhou,
essencialmente, na assunção da responsabilidade política. E é isso que explica
os Montenegros e os Escárias da vida. É isso que alimenta os Venturas e os
Almirantes, como aves de rapina sobrevoando cadáveres, à espera de se
lambuzarem na necrose da nossa débil democracia com as suas sombras de
renovados autoritarismos pairando sobre o nosso futuro.
Abril fez-se para acabar com a guerra, com os privilégios e
os unanimismos. Hoje, cinquenta anos passados, temos um candidato a presidente
da república que despiu a farda, mas incentiva a militarização do país e que
anseia por uma nova ordem de resignada complacência. Temos uma nova casta de
privilegiados políticos que se julgam acima da lei e que usam a própria democracia
para legitimar os seus desmandos éticos. E a censura e o pensamento único deram
lugar à opressão mediática do sensacionalismo, do unanimismo do politicamente
correto e essa ensurdecedora zoeira do caos televisivo da excessiva polarização
e que saliva na ausência de afeto.
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