Da subversão da democracia
Este domingo marcou oficialmente o início de mais uma
campanha eleitoral. No entanto, a sensação que fica é a de que vivemos, há
décadas, numa espécie de Matrix político, um ciclo permanente de
campanhas, caravanas, comícios, debates, cartazes, slogans e outros infindáveis
clones de um qualquer Agent Smith eleitoral. Num nunca mais acabar de
fórmulas repetidas, os partidos procuram capturar e anestesiar os pobres
eleitores, oferecendo-lhes, complacentemente, o pequeno comprimido azul da
resignação.
No seu célebre “Discurso de Despedida”, verdadeira peça de
filosofia política ainda hoje impressionantemente atual, George Washington
deixou um aviso de notável lucidez e presciência. Ao refletir sobre os partidos
políticos, num olhar crítico, deixou o seguinte alerta: “Por mais que [os
partidos políticos] possam de vez em quando responder aos fins populares, é
provável que, com o passar do tempo e das coisas, se tornem motores potentes,
através dos quais homens astutos, ambiciosos e sem princípios serão capazes de
subverter o poder do povo e usurpar para si as rédeas do governo, destruindo
posteriormente os próprios motores que os elevaram ao domínio injusto.”
Este aviso torna-se especialmente pertinente no atual
contexto político nacional, em que o país é empurrado novamente para eleições
por exclusiva responsabilidade de um líder que colocou a sua sobrevivência
política acima dos interesses do partido e, mais grave ainda, acima dos
interesses do próprio país. No meio do bruaá da campanha, importa recordar a
razão pela qual somos chamados às urnas. Não está em causa a governabilidade,
nem sequer uma disputa ideológica séria. O que está em causa é a honorabilidade
de um candidato a Primeiro-Ministro que, tendo falhado eticamente, pretende
agora ver a sua (má) conduta legitimada pelo voto popular, não hesitando para
isso em fazer refém o seu próprio partido e manipular o eleitorado em nome da
sua manutenção no poder.
Independentemente do juízo que cada um possa fazer sobre
essa conduta, ou da sua relevância para o futuro da governação (até porque uma
eventual vitória da AD conduzirá, inevitavelmente, a novas eleições em breve),
a subversão dos valores éticos e democráticos levada a cabo para salvar a pele
política de Montenegro constitui um pecado capital. E não pode, sob pena de
destruirmos os alicerces da própria democracia, passar impune.
A menos de quinze dias das eleições, é fundamental
percebermos que o que está verdadeiramente em jogo no próximo dia 18 não são
apenas visões distintas para o futuro do país. Está em causa, sobretudo, a
saúde moral da nossa já frágil democracia, agora posta em xeque por um
candidato que tenta transformar os eleitores em júris do seu (fraco) juízo
ético.
Estas eleições são também particularmente relevantes a nível
regional, em especial para o líder da oposição, que enfrenta aqui um inesperado
teste à sua liderança. Após um conturbado processo de definição das listas
autárquicas — veja-se o caso de Ponta Delgada —, o resultado eleitoral poderá
confrontar o Partido Socialista com a necessidade inadiável de repensar o seu
rumo, por mais que o atual líder tente eximir-se desta imprescindível reflexão.
Isto porque, ao contrário do princípio aplicado a nível
nacional, afastando os cabeças de lista autárquicos das listas à Assembleia da
República, nos Açores é precisamente o candidato a presidente do Governo
Regional quem surge como cabeça de lista. Uma eventual penalização por parte do
eleitorado dessa decisão, ainda mais por que justificada com uma alegada influência
pessoal na capital, impõe necessariamente uma avaliação, tanto da parte do
próprio candidato, como dos restantes órgãos do partido. Caso contrário,
estaríamos perante mais um exemplo dessa subversão que Washington tão
lucidamente antecipou. E, quando o que está em causa é o futuro da democracia e
do país, ou, neste caso, da região, optar pela complacência do statu quo
poderá ser fatal.
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